São Paulo, quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros

CRÍTICA DRAMA

"A Última Gravação de Krapp" é encontro entre gênios da cena

Bob Wilson dialoga com estrutura irrecusável de Samuel Beckett e faz raro espetáculo fiel ao original

LUIZ FERNANDO RAMOS
CRÍTICO DA FOLHA

O teatro sem drama, mas hiperteatral. "A Última Gravação de Krapp", encenação de Bob Wilson a partir de texto de Samuel Beckett (1906-1989), marca um encontro histórico entre dois gênios da cena do século 20.
A peça, escrita em 1958, inclui-se na primeira fase da dramaturgia do autor irlandês, quando começava no teatro, mas já traz a marca, que só se acentuaria nas décadas seguintes, de ter rubricas milimétricas sobre os movimentos dos personagens.
Nesse caso é o velho Krapp, um homem de 70 anos situado em meio a rolos de fita gravados com narrativas suas sobre o que viveu. Bob Wilson, mesmo quando se baseou na obra de grandes dramaturgos, nunca montou espetáculos centrados em seus textos originais. Desta vez, ciente de que Beckett lhe deixara como base uma estrutura irrecusável para dialogar, ainda mais considerando que seria ele próprio em cena a atuar no papel de Krapp, fez questão de utilizar as indicações cênicas do autor.
Não que ele siga o texto inteiramente. O que fez foi inverter os pesos entre as partes faladas e as partes silenciosas, servindo-se para isso fartamente das rubricas, cujas potencialidades são por ele dilatadas, ao concretizá-las de modos que Beckett nem sonharia que fossem possíveis.
Como sempre, Wilson criou as ações físicas do personagem, e a malha de sons e luzes que a conteria, antes de jogar com as falas de Krapp, gravadas ou ao vivo.
A diferença aqui é que, ao seguir principalmente as rubricas, Wilson realizou uma encenação em grande parte fiel a Beckett e, por isso mesmo, uma das mais raras de sua própria trajetória.
Mesmo respeitando as falas de Krapp, ainda que contraídas, encontra soluções novas que atualizam o texto não no aspecto temático, mas como forma. Por exemplo, quando a voz do personagem surge como um ruído.
Colaboram nessa reinvenção de Beckett a ambiência sonora e a iluminação extraordinárias. Se som e luz são decisivos na cena de Wilson, aqui essa dominância se manifestou peculiarmente, servindo como suporte dramático. Assim são os verossimilhantes sons de uma tempestade trovejante ou de um copo de água sendo servido quando Krapp sai de cena, que atuam como guias narrativos.
O conteúdo do que Krapp diz ou ouve é minimizado e muito mais relevante se torna o que ele faz, sejam ações descritas por Beckett, seja microrreações corporais ao que ouve, ou ao que pensa, enquanto escuta a chuva e sua própria voz no passado. O desempenho de Wilson como ator é brilhante, pois sustenta a cena com um mínimo de palavras e um máximo de expressividade visual. A forte caracterização de sua máscara facial evoca Buster Keaton (1895-1966) e o cinema mudo, mas também atende ao patético que a cena finalmente realiza.
Se já foi possível aproximar esses dois artistas aparentemente situados em polos opostos, essa montagem de "A Última Gravação de Krapp" mostra que eles partilham uma mesma estética.
De fato, Beckett, o dramaturgo que se tornaria encenador, encontrou em Wilson, o encenador que nunca foi dramaturgo, talvez, o seu melhor porta-voz.

A ÚLTIMA GRAVAÇÃO DE KRAPP
AVALIAÇÃO ótimo


Texto Anterior: Crítica: Box registra um dos momentos máximos de Miles Davis
Próximo Texto: Marcelo Coelho: Chorando em chinês
Índice | Comunicar Erros



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.