São Paulo, quinta-feira, 28 de outubro de 2004

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TEATRO

Cem andares abaixo do underground

GERALD THOMAS
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE NOVA YORK

Se você é capaz de imaginar alguém rebelde o suficiente para ser expulso do Living Theater (em suas épocas mais rebeldes, logo após o aprisionamento do grupo no Brasil, em 1970) e continuar a sua rebeldia pacífica, poética e sobreviver dela fazendo uma espécie de "stand-up comedy-tragedy act", esse ser existe e se chama Steve Ben Israel. Seu objetivo não é fazer com que a platéia ria, mas que se comova e se veja refletida na excêntrica figura do ator e na patética era em que vivemos.
Não é à toa que seu espetáculo só fica em cartaz dois dias e acontece, literalmente, num subsolo de um teatro marginal do East Village, o Theater for the New City.
Conheço Steve desde que dirigi o Julian Beck, líder do Living Theater, em "That Time", de Beckett, em 1985. Já nessa época tentava sobreviver desses "stand-up acts". Nos parava na rua com seu jeito exacerbado, achando que a sua falta de sucesso era culpa de todos, dos porto-riquenhos, dos católicos, dos negros, dos russos...
No espetáculo que estreou na semana passada, "Non Violent Executions", ele finalmente chega à conclusão de que os problemas do mundo "sou eu". "Perdão mundo! Vou tentar melhorar!"
Aos 70 anos, com rabo-de-cavalo enorme e sotaque beatnik, Ben Israel me comove extremamente quando deixa seu ego de lado e faz filosofia com coisas cotidianas.
"Holy shit!" (Sagrada merda, uma expressão muito usada aqui no EUA). "Quem terá sido a primeira pessoa a empregar o termo? Será que a merda teria vindo de algum... budista? Ou será que alguém viu alguma aparição pairando no ar que parecesse merda e fez a associação entre o sagrado e o excremento?"
Steve descreve muito de sua vida pessoal e como conseguiu transformar a raiva em paz.
No último grande protesto contra a guerra e contra a convenção republicana, aqui na cidade, ele -marchando com os outros 100 mil- notou que os policiais estavam realmente "pissed off" (emputecidos), num calor infernal. Mas, pregando a paz sempre, soltou uma frase (diz ele que sem querer): "Hey, hey, why not get the police a better pay" (Por que não dar à polícia um salário melhor). O coro foi pegando, e os tais policiais emputecidos esboçavam um sorriso. "Viram? Fiz contato! é sempre possível fazer contato."
Mesmo tendo deixado o Living Theater, a filosofia de Julian Beck nunca o abandonou. "Non Violent Executions" nos fala da criança Steve Ben Israel com a mãe, imigrante russa tendo de engolir que ele seria ator em plena era da contracultura hippie e beatnik. Fala da tortura que sofreu no Brasil, de Chico Mendes e de como o mundo moderno lhe é hostil, de como até hoje resiste ao computador e termina numa emocionante homenagem ao século 20.
Se o bug do milênio tivesse acontecido, ele teria voltado a 1914 e proposto a Joyce e outros intelectuais uma maratona pela paz mundial. Voltaria para 1929 e criaria uma estatuto abolindo o dinheiro. Então enumera as datas catastróficas do século e as substitui por movimentos artísticos e políticos facilmente resolvíveis se o ser humano não tivesse esse excesso de ódio, sede pelo poder etc.
"Não quero que vocês saiam daqui rindo, apesar de eu me proclamar um stand-up comic." É, eu não sai rindo. Steve Ben Israel é o que há de underground sem truques de vanguarda, sem projeções, sem trilha sonora, nada. Somente ele em pé, por duas horas e uma garrafa de suco. E um texto comovente e brilhante. Um sobrevivente. Comovente.


Gerald Thomas é diretor teatral


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