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TEATRO
Cem andares abaixo do underground
GERALD THOMAS
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE NOVA YORK
Se você é capaz de imaginar alguém rebelde o suficiente para ser expulso do Living Theater
(em suas épocas mais rebeldes, logo após o aprisionamento do grupo no Brasil, em 1970) e continuar
a sua rebeldia pacífica, poética e
sobreviver dela fazendo uma espécie de "stand-up comedy-tragedy act", esse ser existe e se chama Steve Ben Israel. Seu objetivo
não é fazer com que a platéia ria,
mas que se comova e se veja refletida na excêntrica figura do ator e
na patética era em que vivemos.
Não é à toa que seu espetáculo
só fica em cartaz dois dias e acontece, literalmente, num subsolo de
um teatro marginal do East Village, o Theater for the New City.
Conheço Steve desde que dirigi
o Julian Beck, líder do Living
Theater, em "That Time", de Beckett, em 1985. Já nessa época tentava sobreviver desses "stand-up
acts". Nos parava na rua com seu
jeito exacerbado, achando que a
sua falta de sucesso era culpa de
todos, dos porto-riquenhos, dos
católicos, dos negros, dos russos...
No espetáculo que estreou na
semana passada, "Non Violent
Executions", ele finalmente chega
à conclusão de que os problemas
do mundo "sou eu". "Perdão
mundo! Vou tentar melhorar!"
Aos 70 anos, com rabo-de-cavalo enorme e sotaque beatnik, Ben
Israel me comove extremamente
quando deixa seu ego de lado e faz
filosofia com coisas cotidianas.
"Holy shit!" (Sagrada merda,
uma expressão muito usada aqui
no EUA). "Quem terá sido a primeira pessoa a empregar o termo?
Será que a merda teria vindo de
algum... budista? Ou será que alguém viu alguma aparição pairando no ar que parecesse merda
e fez a associação entre o sagrado
e o excremento?"
Steve descreve muito de sua vida pessoal e como conseguiu
transformar a raiva em paz.
No último grande protesto contra a guerra e contra a convenção
republicana, aqui na cidade, ele
-marchando com os outros 100
mil- notou que os policiais estavam realmente "pissed off" (emputecidos), num calor infernal.
Mas, pregando a paz sempre, soltou uma frase (diz ele que sem
querer): "Hey, hey, why not get
the police a better pay" (Por que
não dar à polícia um salário melhor). O coro foi pegando, e os tais
policiais emputecidos esboçavam
um sorriso. "Viram? Fiz contato! é
sempre possível fazer contato."
Mesmo tendo deixado o Living
Theater, a filosofia de Julian Beck
nunca o abandonou. "Non Violent Executions" nos fala da criança Steve Ben Israel com a mãe,
imigrante russa tendo de engolir
que ele seria ator em plena era da
contracultura hippie e beatnik.
Fala da tortura que sofreu no Brasil, de Chico Mendes e de como o
mundo moderno lhe é hostil, de
como até hoje resiste ao computador e termina numa emocionante
homenagem ao século 20.
Se o bug do milênio tivesse
acontecido, ele teria voltado a
1914 e proposto a Joyce e outros
intelectuais uma maratona pela
paz mundial. Voltaria para 1929 e
criaria uma estatuto abolindo o
dinheiro. Então enumera as datas
catastróficas do século e as substitui por movimentos artísticos e
políticos facilmente resolvíveis se
o ser humano não tivesse esse excesso de ódio, sede pelo poder etc.
"Não quero que vocês saiam daqui rindo, apesar de eu me proclamar um stand-up comic." É, eu
não sai rindo. Steve Ben Israel é o
que há de underground sem truques de vanguarda, sem projeções, sem trilha sonora, nada. Somente ele em pé, por duas horas e
uma garrafa de suco. E um texto
comovente e brilhante. Um sobrevivente. Comovente.
Gerald Thomas é diretor teatral
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