|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Comentário/ "Retrato de Grupo"
Cebrap celebra sua "epopeia" nos anos 70 e vê presente incerto
Livro sobre 40 anos da instituição reúne entrevistas com intelectuais e expõe divergências sobre gestões FHC e Lula
FERNANDO DE BARROS E SILVA
COLUNISTA DA FOLHA
Em maio de 1994, Fernando
Henrique Cardoso, então candidato à Presidência da República, foi à USP para fazer uma
conferência a respeito dos "Desafios Teóricos dos Anos 70".
Comemorava-se o aniversário
de 25 anos do Cebrap (Centro
Brasileiro de Análise e Planejamento), do qual o sociólogo havia sido o principal idealizador
e um dos fundadores, em 1969.
O sociólogo Francisco de Oliveira, à época eleitor de Lula e
então presidente do Cebrap,
não gostou nada do que ouviu
ali. Achou que o amigo havia
misturado a história recente do
país com sua própria trajetória
intelectual e política, de tal forma que tudo confluía para o colo da sua candidatura.
Chico deixou a sala contrariado e os dois ficariam um bom
tempo sem trocar palavras. No
ano seguinte, quando FHC iniciava seu voo à frente do país,
Chico se desligava do Cebrap.
"Quanto mais Fernando ia
para a política, mais Chico insistia em dizer que Fernando
estava traindo." São palavras
do filósofo José Arthur Giannotti, também fundador do
centro, numa das entrevistas
do livro "Retrato de Grupo - 40
Anos de Cebrap", que acaba de
ser lançado pela Cosac Naify.
Organizada pela atual presidente do Cebrap, Paula Monteiro, e pelo editor da revista
"Novos Estudos Cebrap", Flávio Moura, a obra reúne 11 entrevistas com membros ligados
à instituição e conta ainda com
três ensaios em homenagem a
Ruth Cardoso, Cândido Procópio Ferreira de Camargo e Vilmar Faria, já mortos.
Na última terça, durante o
lançamento do livro, FHC e
Chico de Oliveira voltaram a
debater diante de 800 pessoas.
Alguns temiam faíscas no palco. Houve, porém, um esforço
nítido para deixar as diferenças
de lado. O clima foi de camaradagem e de celebração, o oposto daquele visto 15 anos atrás.
Tintas heroicas
Divergências e cumplicidade.
Essas duas palavras resumem
bem o espírito dessa obra comemorativa a respeito de um
capítulo importante da história
intelectual (e política) do Brasil. O documentário em DVD
que acompanha o livro, dirigido
por Henri Gervaiseau, reproduz parte das entrevistas. No
filme, fica mais explícita, como
se pedisse para ser dramatizada, a construção de uma história coletiva e comum pela fala
de cada um dos entrevistados.
O que se ouve e lê nos depoimentos é quase uma epopeia,
descrita com tintas algo heroicas e marcada por discernimento intelectual e coragem
política quando parecia difícil
conciliar esses dois traços.
"Você não pode imaginar o
que era o Cebrap nos anos 70.
Isso aqui era o paraíso (...). O
Cebrap sempre apostou na democracia. Era muito difícil porque você estava sufocado por
todos os lados." Essa fala de
Chico resume o diagnóstico
que é de todos. E os depoimentos tornam evidente que, a despeito do sentimento de grupo, a
atuação de FHC funcionou ali
como farol da instituição.
Há, sintomaticamente, pouca discussão e análise a respeito
dos anos 1980 e 90. É uma espécie de silêncio incômodo diante
da impossibilidade de dar sequência à narrativa comum.
O crítico Rodrigo Naves, responsável pela revista do Cebrap entre meados dos anos 80
e dos 90, diz: "A pedra de toque
daqui era o desejo de mudar o
Brasil. Era, porque houve aqui
o canto do cisne dessa vontade
de mudar o Brasil".
O ajuste dessa vontade genuína às condições do presente
é, talvez, o aspecto mais revelador do livro. Ninguém se entende a respeito do significado histórico dos governos FHC e Lula, nem sobre a relação entre
eles. Houve ruptura, diz o economista Paul Singer, "basicamente no campo social". Mesmo as políticas que começaram
nos anos FHC "mudaram completamente de ênfase, de dimensão e de efeitos na época do
Lula", diz Singer, secretário nacional de Economia Solidária.
"O governo do Lula é pior que
o do Fernando Henrique. Lula
é uma regressão política, propriamente. O governo do Fernando Henrique era uma virada à direita", acusa Chico.
São governos de "atualização
capitalista", que "têm pé e cabeça, ao contrário dos anteriores, que não tinham direção",
diz o crítico Roberto Schwarz,
que, no entanto, defende que o
intelectual de esquerda deve
guardar distância do poder.
"O que me parece errado é
adotar uma visão rósea do curso geral do capitalismo porque
o Brasil está com o vento a favor ou porque temos amigos no
governo", diz Schwarz. Ter esse
discernimento intelectual e
manter essa distância da política talvez seja hoje o mais difícil.
RETRATO DE GRUPO
Autor: Paula Monteiro e Flavio Moura
(orgs.)
Editora: Cosac Naify
Quanto: R$ 59 (326 págs.)
Texto Anterior: Trecho Próximo Texto: Ciclo: Obra de Dostoiévski tem debates Índice
|