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LIVROS
Crítica/"Às Cegas"
Magris constrói narrativa complexa
Em "Às Cegas", escritor italiano cotado para o Nobel faz romance protagonizado por homem internando em sanatório
ALCIR PÉCORA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Na bolsa de apostas do
Nobel de Literatura,
poucos nomes causam
expectativa como o de Claudio
Magris, ensaísta, tradutor, romancista, colaborador do "Corriere della Sera", professor de
língua e literatura alemãs na
Universidade de Trieste.
Esta é também a cidade onde
nasceu, cujo estatuto de fronteira pluricultural tem papel
decisivo na sua literatura. Não é
diferente com o romance "Às
Cegas", de 2005, lançado agora
no Brasil.
Sintetizar o novo livro não é
fácil, mas farei duas tentativas.
A primeira: certo Salvatore
Cippico tem um surto de fúria
diante de uma vitrine de televisores, os quais exibem o discurso em que Gorbatchov, no Natal de 1991, anuncia o fim da
União Soviética. Pouco depois,
uma recaída o leva à internação
em centro de saúde mental.
Seu prontuário o descreve
como "uma inteligência vivaz,
mas com uma evidente dissociação ideoafetiva que perturba
sua orientação espaçotemporal, imagens mentais que não
consegue pôr no quadro da própria experiência existencial,
mas tende a elaborar num romance delirante".
O livro que lemos é esse romance delirante composto pelos escritos e depoimentos de
Salvatore aos médicos. Ficamos sabendo que fora militante
comunista em várias partes do
mundo, tendo sido preso e torturado em Dachau, pelos nazistas, e em Goli Otok, pelos próprios camaradas, quando Tito
se torna dissidente da política
de Moscou.
Salvatore sobrevive graças à
fuga arquitetada pela amante
Maria, a qual abandona, grávida, por determinação do partido, que o manda para a Tasmânia, em nova missão revolucionária. Reside aí o núcleo do delírio e da culpa que o assalta
tantos anos depois.
Na sua narrativa, não apenas
Maria mas todos os seus camaradas estão na posição dos frangos que, antes do abate, são
pendurados pelos pés e passam
seus últimos minutos trocando
violentas bicadas entre si.
As evocações derivativas de
Salvatore misturam a sua vida
com as de vários aventureiros,
sejam reais, como Jorgen Jorgensen (1780-1841), que se autoproclamou rei da Islândia, ou
míticos, como Jasão, das Argonáuticas, de Apolônio de Rhodes, entre outros.
O ponto de fuga dessa perspectiva narrativa que indistingue vida pessoal, mito e história
é a figura feminina, que sempre
reverte a Maria. Ela se mostra
ora como forma esculpida na
proa dos navios, que avançam
sem outra proteção por mares
nunca navegados; ora como
pungente memória culpada da
traição cometida.
Percebe-se a questão homérica embutida no título do romance. Salvatore está na posição do aedo cego que compila
antigas gestas. Ocorre que estas
já não admitem celebração.
A traição inútil do amor em
nome de um futuro que nunca
virá, as violências cometidas
contra os próprios companheiros já não podem ser lembradas
senão às custas da perda da lucidez. A loucura é a derradeira
forma de vida, ou de vida depois
da morte, pois esta já ocorreu,
em algum momento da luta.
A segunda tentativa de sintetizar a complexa narrativa de
"Às Cegas" repete o provérbio
da Ístria que abre e fecha o romance: "Caro Cogoi, semo cagai". Em bom português: "Caro
Amigo, estamos fodidos".
ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária na
Unicamp
ÀS CEGAS
Autor: Claudio Magris
Tradução: Maurício Santana Dias
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 59 (384 págs.)
Avaliação: bom
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