São Paulo, sábado, 28 de novembro de 2009

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LIVROS

Crítica/"Às Cegas"

Magris constrói narrativa complexa

Em "Às Cegas", escritor italiano cotado para o Nobel faz romance protagonizado por homem internando em sanatório

ALCIR PÉCORA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Na bolsa de apostas do Nobel de Literatura, poucos nomes causam expectativa como o de Claudio Magris, ensaísta, tradutor, romancista, colaborador do "Corriere della Sera", professor de língua e literatura alemãs na Universidade de Trieste.
Esta é também a cidade onde nasceu, cujo estatuto de fronteira pluricultural tem papel decisivo na sua literatura. Não é diferente com o romance "Às Cegas", de 2005, lançado agora no Brasil.
Sintetizar o novo livro não é fácil, mas farei duas tentativas. A primeira: certo Salvatore Cippico tem um surto de fúria diante de uma vitrine de televisores, os quais exibem o discurso em que Gorbatchov, no Natal de 1991, anuncia o fim da União Soviética. Pouco depois, uma recaída o leva à internação em centro de saúde mental.
Seu prontuário o descreve como "uma inteligência vivaz, mas com uma evidente dissociação ideoafetiva que perturba sua orientação espaçotemporal, imagens mentais que não consegue pôr no quadro da própria experiência existencial, mas tende a elaborar num romance delirante".
O livro que lemos é esse romance delirante composto pelos escritos e depoimentos de Salvatore aos médicos. Ficamos sabendo que fora militante comunista em várias partes do mundo, tendo sido preso e torturado em Dachau, pelos nazistas, e em Goli Otok, pelos próprios camaradas, quando Tito se torna dissidente da política de Moscou.
Salvatore sobrevive graças à fuga arquitetada pela amante Maria, a qual abandona, grávida, por determinação do partido, que o manda para a Tasmânia, em nova missão revolucionária. Reside aí o núcleo do delírio e da culpa que o assalta tantos anos depois.
Na sua narrativa, não apenas Maria mas todos os seus camaradas estão na posição dos frangos que, antes do abate, são pendurados pelos pés e passam seus últimos minutos trocando violentas bicadas entre si.
As evocações derivativas de Salvatore misturam a sua vida com as de vários aventureiros, sejam reais, como Jorgen Jorgensen (1780-1841), que se autoproclamou rei da Islândia, ou míticos, como Jasão, das Argonáuticas, de Apolônio de Rhodes, entre outros.
O ponto de fuga dessa perspectiva narrativa que indistingue vida pessoal, mito e história é a figura feminina, que sempre reverte a Maria. Ela se mostra ora como forma esculpida na proa dos navios, que avançam sem outra proteção por mares nunca navegados; ora como pungente memória culpada da traição cometida.
Percebe-se a questão homérica embutida no título do romance. Salvatore está na posição do aedo cego que compila antigas gestas. Ocorre que estas já não admitem celebração.
A traição inútil do amor em nome de um futuro que nunca virá, as violências cometidas contra os próprios companheiros já não podem ser lembradas senão às custas da perda da lucidez. A loucura é a derradeira forma de vida, ou de vida depois da morte, pois esta já ocorreu, em algum momento da luta.
A segunda tentativa de sintetizar a complexa narrativa de "Às Cegas" repete o provérbio da Ístria que abre e fecha o romance: "Caro Cogoi, semo cagai". Em bom português: "Caro Amigo, estamos fodidos".

ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária na Unicamp


ÀS CEGAS

Autor: Claudio Magris
Tradução: Maurício Santana Dias
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 59 (384 págs.)
Avaliação: bom




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