São Paulo, sexta-feira, 28 de dezembro de 2001

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TOQUE DE MIDANI

MÚSICA

Sírio-francês de atuação central na MPB, André Midani fala de seu papel no movimento, na tropicália e no rock dos 80

"Eu fui um catalisador da bossa nova"

Flávio Florido/Folha Imagem
O executivo aposentado André Midani, 69, que exerceu papel decisivo na MPB entre 1958 e 1990


PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL

O homem tem 69 anos e está aposentado. Quando não estava, André Midani ocupou em pelo menos três ocasiões tarefa central e dramática na indústria de disco no Brasil.
Ao redor de seu umbigo, viu surgirem e tomarem conta do pedaço vertentes de frente da MPB dita moderna: a bossa nova, em 1958; o tropicalismo, em 1968, e o pop-rock brasileiro, em 1982. Sempre acomodado nos bastidores, teve ação contínua em tudo o que aconteceu no país em termos de música entre 1955 e 1989 (quando se estabeleceu nos Estados Unidos, até 2001).
Executivo da música desde a Odeon (hoje EMI) do final dos anos 50, quando acompanhou Aloysio de Oliveira na construção da bossa, foi depois presidente da Philips (hoje Universal), impulsionando a ascensão tropicalista. O rock dos 80 foi subproduto da fundação da filial brasileira da Warner, iniciada por ele em 76.
Hoje, aquela gravadora comemora 25 anos com uma coleção de compilações malcuidadas denominada "Warner 25 Anos" -a Midani sobra apenas uma leve citação, num texto rápido de apresentação (leia quadro abaixo).
Olhando para o passado, Midani poderia contar sua história cantando músicas e falando dos artistas que fez desabrochar, de João Gilberto aos Titãs, de Gal Costa e Maria Bethânia a Elis Regina, de Jorge Ben e Tim Maia a Ed Motta (leia quadro abaixo).
"Eu tentei fugir/ não queria me alistar/ eu quero lutar,/ mas não com essa farda", parafrasearia o grupo Ira!, contando a viagem do sírio educado na França ao Brasil, para fugir da guerra da Argélia. "O pintor Paul Gauguin amou a luz da baía da Guanabara", devolveria a citação a Caetano, ao lembrar sua chegada ao Rio, por mar. Leia histórias de Midani a seguir.

Folha - Você não pretende fazer mais nada ligado à música?
André Midani -
Estou completamente aposentado. Após 12 anos dirigindo 14 companhias em Nova York, estava querendo voltar ao Brasil, dividir minha vida entre aqui e lá. E me aposentar. Comecei a trabalhar com 16 anos, já são muitos anos de trabalho, não é? O que eu podia fazer acho que já fiz. Se não fiz mais, é porque não podia. Sobretudo, tinha que me desligar psicologicamente, fisicamente e neuroticamente dessa coisa. Evidentemente não vou passar o resto da vida sem fazer nada, mas lidar com música não vou mais. Só seria comparado ao que já fiz. Vou viver perto do mundo artístico, porque muitos deles são meus amigos. E pretendo me dedicar a dar um pouco de volta à vida o que ela me deu, com projetos comunitários.

Folha - Como chegou ao Brasil?
Midani -
Nasci na Síria, onde fiquei até dois ou três anos, e fui para a França. Em 55, havia a guerra da Argélia, que eu não quis fazer. Entrei no rol dos desertores. Cheguei ao Brasil meramente por acaso, pois tinha de encontrar países que não precisassem de visto. Peguei um navio sem saber bem onde ia ficar. Quando vi a baía da Guanabara, achei uma coisa de outro mundo. Todo brasileiro devia um dia pegar um navio para poder entrar no Rio pela baía. É uma coisa assim sublime. Disse: "Aqui é que vou ficar".
Tive muita sorte, dez dias depois eu estava trabalhando com disco, na Odeon. Em 55 havia ali Violeta Cavalcanti, Dorival Caymmi, Raul de Barros, Altamiro Carrilho, Ademilde Fonseca... Como se chama essa senhora fantástica, superlésbica, de óculos, feia? Aracy de Almeida.

Folha - Era a geração que seria substituída pela bossa nova?
Midani -
Quando cheguei, já achava que não havia música brasileira para a juventude daqui. Isso foi a coisa que mais repeti dali em diante. Caí no meio da bossa nova. Meu papel ali foi um papel muito esquisito. Acho que fui um catalisador. Quem levou João Gilberto para a Odeon foi Caymmi. Caymmi o levou a Aloysio de Oliveira e a mim. Tivemos o entendimento de dizer: "Vamos nós".

Folha - O que você, estrangeiro, pensava das acusações de que a bossa americanizava a MPB?
Midani -
Disseram o mesmo do Pixinguinha, do Caetano, e por aí vai. É um país muito esquisito. O único problema que o Brasil tem é um complexo de inferioridade. É como se uma pessoa tivesse um profundo complexo de inferioridade, como eu já tive quando era menor. Você diz: "Uma pessoa tão bonita, por quê? Abra, viva, seja bom, seja bonito". O que é ser brasileiro? É um gueto? Não.

Folha - Como foi parar na Philips?
Midani -
A Philips estava aqui no Brasil havia 12 anos e tinha grandes dificuldades de rentabilidade. Os alemães e os holandeses estavam começando a se impacientar. A palavra é horrorosa, mas fui para liquidar um montão de artistas, entre 150. Os importantes estavam lá no meio, a companhia nunca chegava a eles. Fiquei em casa dias ouvindo, separando. De 150 fui para cem, daí para 80, até chegar a uns 50. Foi penoso.
Mas a companhia se abriu mais para a juventude brasileira. Me encontrei com a tropicália, que estava lá, ainda não desenhada, perdida no meio de 150 artistas. As pessoas olhavam o pessoal da tropicália como se fossem cidadãos de segunda categoria. Nunca fui uma pessoa propriamente criativa, mas sou como um cão de caça. Se há um bichinho lá que é "o" bichinho, eu o identifico mais rapidamente. Atrás de qualquer grande artista há uma grande personalidade, mais importante que o talento puramente musical.

Folha - Como era sua relação com o regime militar?
Midani -
Tínhamos todos os artistas exilados. Definitivamente a relação era tensa, porque éramos os responsáveis jurídicos por eles. Eu, como presidente da companhia, muitas vezes tive que ir a Brasília. Era tenso, mas a coisa mais tensa foi o descobrimento do movimento black. Os militares achavam, com toda a razão, que, se um dia a favela fosse se politizar, se militarizar, era a revolução social neste país. É assim até hoje, a coisa está lá em cima. Se o pessoal resolver lutar, vira a Palestina. Não sei quem inventou isso, mas, se uma vez tive problema, inclusive com possível expulsão do país, foi quando alguém disse que eu recebia dinheiro do movimento black norte-americano para comandar a subversão nas favelas. Aí passei uns dias ruins.

Folha - Você recebia dinheiro?
Midani -
Não, é porque aí eu já estava na Warner, e eles achavam que porque era a Warner...

Folha - Wilson Simonal morreu dizendo que você "veio para acabar". O que houve entre vocês?
Midani -
É penoso dizer isso... Tive muitos problemas políticos dentro da companhia, por causa de Chico Buarque sobretudo. Um dia uma pessoa muito importante do governo militar, que não vou nomear, me pediu para contratar Wilson Simonal. Disse: "Se você quiser continuar como está, não pode ter só artistas que sejam contra o regime. Tem que ter alguém a favor, tem que contratar o Simonal". Olhei aquilo com perplexidade, mas tive que contratar.

Folha - Por motivos artísticos você não o contrataria?
Midani -
Não, de jeito nenhum. Não poderia, porque ele era a antítese. Tive que ir artista por artista, entre os mais importantes, explicando que ia ter que contratar o Simonal. Claro, não era um bichinho amado na companhia.

Folha - Hoje as companhias acreditam que inventam artistas, não?
Midani -
Tudo bem, deixa elas acreditarem. O artista para eles é um produto. Isso nunca deu certo comigo. A indústria de disco é mais próspera e bonita e útil identificando as pessoas que já têm isso lá dentro e que precisam de ajuda para colocar para fora. Foi também o que eu, Pena Schmidt e Liminha fizemos com o rock nos anos 80. Para que você vai inventar um artista se já tem tantos?
Hoje o Brasil mudou muito, e os talentos estão em lugares onde antigamente a gente não procurava ou procurava menos. Expressam coisas que nós, classe média branca, ignoramos, desconhecemos ou reagimos contra. Um exemplo é o tal do rap brasileiro. Um grupo que respeito sumamente é O Rappa. Marcelo Yuka é uma inteligência. Quando você encontra um Yuka, você gruda no Yuka, ele sabe. Quando encontra um Chico Science, você gruda, eles sempre são a ponta dum iceberg. Como há esses, deve haver outros. Eles não estão em companhias grandes? Muito bem, o que você quer que eu diga? Azar.

Folha - Que análise você faria deste momento da indústria local?
Midani -
O drama tem sido que os presidentes das companhias só olham a participação no mercado que têm: "Eu quero ter 20%, 30%", "estou ferrado porque tenho 15%". Ficam dentro desse gueto digladiando. Enquanto isso, o mundo vai correndo. O governo brasileiro é fogo, mas a pirataria é uma história antiga, creio que não deram o suficiente em empenho para proteger seu mercado. Mas não quero me preocupar, é problema dos meninos, não é comigo. Tenho 69 anos, os meninos que vão fazer a música de amanhã têm 20. Vão me olhar como se fosse um túmulo.


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