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TOQUE DE MIDANI
MÚSICA
Sírio-francês de atuação central na MPB, André Midani fala de seu papel no movimento, na tropicália e no rock dos 80
"Eu fui um catalisador da bossa nova"
Flávio Florido/Folha Imagem
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O executivo aposentado André Midani, 69, que exerceu papel decisivo na MPB entre 1958 e 1990 |
PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL
O homem tem 69 anos e está
aposentado. Quando não estava,
André Midani ocupou em pelo
menos três ocasiões tarefa central
e dramática na indústria de disco
no Brasil.
Ao redor de seu umbigo, viu
surgirem e tomarem conta do pedaço vertentes de frente da MPB
dita moderna: a bossa nova, em
1958; o tropicalismo, em 1968, e o
pop-rock brasileiro, em 1982.
Sempre acomodado nos bastidores, teve ação contínua em tudo o
que aconteceu no país em termos
de música entre 1955 e 1989
(quando se estabeleceu nos Estados Unidos, até 2001).
Executivo da música desde a
Odeon (hoje EMI) do final dos
anos 50, quando acompanhou
Aloysio de Oliveira na construção
da bossa, foi depois presidente da
Philips (hoje Universal), impulsionando a ascensão tropicalista.
O rock dos 80 foi subproduto da
fundação da filial brasileira da
Warner, iniciada por ele em 76.
Hoje, aquela gravadora comemora 25 anos com uma coleção
de compilações malcuidadas denominada "Warner 25 Anos" -a
Midani sobra apenas uma leve citação, num texto rápido de apresentação (leia quadro abaixo).
Olhando para o passado, Midani poderia contar sua história
cantando músicas e falando dos
artistas que fez desabrochar, de
João Gilberto aos Titãs, de Gal
Costa e Maria Bethânia a Elis Regina, de Jorge Ben e Tim Maia a
Ed Motta (leia quadro abaixo).
"Eu tentei fugir/ não queria me
alistar/ eu quero lutar,/ mas não
com essa farda", parafrasearia o
grupo Ira!, contando a viagem do
sírio educado na França ao Brasil,
para fugir da guerra da Argélia.
"O pintor Paul Gauguin amou a
luz da baía da Guanabara", devolveria a citação a Caetano, ao lembrar sua chegada ao Rio, por mar.
Leia histórias de Midani a seguir.
Folha - Você não pretende fazer
mais nada ligado à música?
André Midani - Estou completamente aposentado. Após 12 anos
dirigindo 14 companhias em Nova York, estava querendo voltar
ao Brasil, dividir minha vida entre
aqui e lá. E me aposentar. Comecei a trabalhar com 16 anos, já são
muitos anos de trabalho, não é? O
que eu podia fazer acho que já fiz.
Se não fiz mais, é porque não podia. Sobretudo, tinha que me desligar psicologicamente, fisicamente e neuroticamente dessa
coisa. Evidentemente não vou
passar o resto da vida sem fazer
nada, mas lidar com música não
vou mais. Só seria comparado ao
que já fiz. Vou viver perto do
mundo artístico, porque muitos
deles são meus amigos. E pretendo me dedicar a dar um pouco de
volta à vida o que ela me deu, com
projetos comunitários.
Folha - Como chegou ao Brasil?
Midani - Nasci na Síria, onde fiquei até dois ou três anos, e fui para a França. Em 55, havia a guerra
da Argélia, que eu não quis fazer.
Entrei no rol dos desertores. Cheguei ao Brasil meramente por acaso, pois tinha de encontrar países
que não precisassem de visto. Peguei um navio sem saber bem onde ia ficar. Quando vi a baía da
Guanabara, achei uma coisa de
outro mundo. Todo brasileiro devia um dia pegar um navio para
poder entrar no Rio pela baía. É
uma coisa assim sublime. Disse:
"Aqui é que vou ficar".
Tive muita sorte, dez dias depois eu estava trabalhando com
disco, na Odeon. Em 55 havia ali
Violeta Cavalcanti, Dorival
Caymmi, Raul de Barros, Altamiro Carrilho, Ademilde Fonseca...
Como se chama essa senhora fantástica, superlésbica, de óculos,
feia? Aracy de Almeida.
Folha - Era a geração que seria
substituída pela bossa nova?
Midani - Quando cheguei, já
achava que não havia música brasileira para a juventude daqui. Isso foi a coisa que mais repeti dali
em diante. Caí no meio da bossa
nova. Meu papel ali foi um papel
muito esquisito. Acho que fui um
catalisador. Quem levou João Gilberto para a Odeon foi Caymmi.
Caymmi o levou a Aloysio de Oliveira e a mim. Tivemos o entendimento de dizer: "Vamos nós".
Folha - O que você, estrangeiro,
pensava das acusações de que a
bossa americanizava a MPB?
Midani - Disseram o mesmo do
Pixinguinha, do Caetano, e por aí
vai. É um país muito esquisito. O
único problema que o Brasil tem é
um complexo de inferioridade. É
como se uma pessoa tivesse um
profundo complexo de inferioridade, como eu já tive quando era
menor. Você diz: "Uma pessoa
tão bonita, por quê? Abra, viva,
seja bom, seja bonito". O que é ser
brasileiro? É um gueto? Não.
Folha - Como foi parar na Philips?
Midani - A Philips estava aqui no
Brasil havia 12 anos e tinha grandes dificuldades de rentabilidade.
Os alemães e os holandeses estavam começando a se impacientar.
A palavra é horrorosa, mas fui para liquidar um montão de artistas,
entre 150. Os importantes estavam lá no meio, a companhia
nunca chegava a eles. Fiquei em
casa dias ouvindo, separando. De
150 fui para cem, daí para 80, até
chegar a uns 50. Foi penoso.
Mas a companhia se abriu mais
para a juventude brasileira. Me
encontrei com a tropicália, que
estava lá, ainda não desenhada,
perdida no meio de 150 artistas.
As pessoas olhavam o pessoal da
tropicália como se fossem cidadãos de segunda categoria. Nunca
fui uma pessoa propriamente
criativa, mas sou como um cão de
caça. Se há um bichinho lá que é
"o" bichinho, eu o identifico mais
rapidamente. Atrás de qualquer
grande artista há uma grande personalidade, mais importante que
o talento puramente musical.
Folha - Como era sua relação com
o regime militar?
Midani - Tínhamos todos os artistas exilados. Definitivamente a
relação era tensa, porque éramos
os responsáveis jurídicos por eles.
Eu, como presidente da companhia, muitas vezes tive que ir a
Brasília. Era tenso, mas a coisa
mais tensa foi o descobrimento
do movimento black. Os militares
achavam, com toda a razão, que,
se um dia a favela fosse se politizar, se militarizar, era a revolução
social neste país. É assim até hoje,
a coisa está lá em cima. Se o pessoal resolver lutar, vira a Palestina. Não sei quem inventou isso,
mas, se uma vez tive problema,
inclusive com possível expulsão
do país, foi quando alguém disse
que eu recebia dinheiro do movimento black norte-americano para comandar a subversão nas favelas. Aí passei uns dias ruins.
Folha - Você recebia dinheiro?
Midani - Não, é porque aí eu já
estava na Warner, e eles achavam
que porque era a Warner...
Folha - Wilson Simonal morreu
dizendo que você "veio para acabar". O que houve entre vocês?
Midani - É penoso dizer isso... Tive muitos problemas políticos
dentro da companhia, por causa
de Chico Buarque sobretudo. Um
dia uma pessoa muito importante
do governo militar, que não vou
nomear, me pediu para contratar
Wilson Simonal. Disse: "Se você
quiser continuar como está, não
pode ter só artistas que sejam
contra o regime. Tem que ter alguém a favor, tem que contratar o
Simonal". Olhei aquilo com perplexidade, mas tive que contratar.
Folha - Por motivos artísticos você não o contrataria?
Midani - Não, de jeito nenhum.
Não poderia, porque ele era a antítese. Tive que ir artista por artista, entre os mais importantes, explicando que ia ter que contratar o
Simonal. Claro, não era um bichinho amado na companhia.
Folha - Hoje as companhias acreditam que inventam artistas, não?
Midani - Tudo bem, deixa elas
acreditarem. O artista para eles é
um produto. Isso nunca deu certo
comigo. A indústria de disco é
mais próspera e bonita e útil identificando as pessoas que já têm isso lá dentro e que precisam de
ajuda para colocar para fora. Foi
também o que eu, Pena Schmidt e
Liminha fizemos com o rock nos
anos 80. Para que você vai inventar um artista se já tem tantos?
Hoje o Brasil mudou muito, e os
talentos estão em lugares onde
antigamente a gente não procurava ou procurava menos. Expressam coisas que nós, classe média
branca, ignoramos, desconhecemos ou reagimos contra. Um
exemplo é o tal do rap brasileiro.
Um grupo que respeito sumamente é O Rappa. Marcelo Yuka é
uma inteligência. Quando você
encontra um Yuka, você gruda no
Yuka, ele sabe. Quando encontra
um Chico Science, você gruda,
eles sempre são a ponta dum iceberg. Como há esses, deve haver
outros. Eles não estão em companhias grandes? Muito bem, o que
você quer que eu diga? Azar.
Folha - Que análise você faria
deste momento da indústria local?
Midani - O drama tem sido que
os presidentes das companhias só
olham a participação no mercado
que têm: "Eu quero ter 20%,
30%", "estou ferrado porque tenho 15%". Ficam dentro desse
gueto digladiando. Enquanto isso, o mundo vai correndo. O governo brasileiro é fogo, mas a pirataria é uma história antiga, creio
que não deram o suficiente em
empenho para proteger seu mercado. Mas não quero me preocupar, é problema dos meninos, não
é comigo. Tenho 69 anos, os meninos que vão fazer a música de
amanhã têm 20. Vão me olhar como se fosse um túmulo.
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