São Paulo, sexta-feira, 28 de dezembro de 2001

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ARTIGO

Jovem mexicano põe América hispânica no mapa do noir

CARLOS FUENTES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Os romances de detetive não pegaram na América hispânica. Alguns preciosos exemplos, de Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares e Manuel Peyrou, não bastam para aclimatar um estilo e um tema narrativo que, inventado por Edgar Allan Poe, ganhou cidadania na Inglaterra vitoriana, com Sherlock Holmes, e, no entre-guerras, com Agatha Christie e Dorothy Sayers.
Se Holmes se dá o luxo de caminhar por todas as classes sociais, Christie, Sayers e seus demais seguidores limitam-se às classes altas, aos finais de semana no campo, às viagens exóticas pelo Nilo...
Os norte-americanos seguiram a mesma tradição por algum tempo. Philo Vance e Ellery Queen não saem dos salões elegantes. Serão os autores de verniz noir, Dashiell Hammett, Raymond Chandler, James M. Cain, Ross McDonald, que levarão o gênero das "penthouses" ao sótão, das piscinas aos charcos. Charcos urbanos onde a lua não se reflete porque tudo, lua e água, está manchado de sangue.
Carlos Rubio Rosell se incorpora a essa última tradição, a do romance noir norte-americano, mas dá ao gênero um sabor latino-americano muito particular. Não só se inscreve em uma prática literária pouco comum entre os nossos como, na medida em que sua família literária é a do romance noir, sua orfandade literária se relaciona a outro gênero, bem identificado com uma figura estelar da geração beat, Jack Kerouac e seu romance "On the Road".
"Los Ángeles-Sur" é um thriller de estrada. Mas a "road novel" pertence à tradição mais antiga da literatura: a do deslocamento.
Desde Homero o abandono do lar é o tema original do épico ocidental. Original não só no sentido do "gran tour" que todo europeu inteligente tinha de fazer para passar da juventude a uma certa maturidade, na Europa do Iluminismo em diante, mas também no deslocamento em busca do Graal, da cruzada religiosa, da busca do épico perdido.
Parsifal e Ricardo Coração de Leão, dom Quixote e Wilhelm Maister, os heróis de Júlio Verne, todos se deslocam, se movem, escolhem o caminho. Na América hispânica, o deslocamento dos exploradores está na raiz de nossa narrativa e logo na conquista dos interiores impenetráveis, traço comum entre a conquista do oeste nos EUA e a conquista das selvas e rios na América ibérica.
O tumulto social, e às vezes revolucionário, determina o movimento latino-americano. De "Os Sertões", de Euclydes da Cunha, a "Canaima", de Romulo Gallegos, ou a "Los de Abajo", de Mariano Azuela. Mas esses mesmos deslocamentos às vezes são vistos por seres imóveis, como Pedro Páramo, que jamais sai de Media Luna, por mais torvelinhos que enfrente. Rosell, em "Los Ángeles-Sur", une as duas tradições. Não é fortuito que seu romance se inicie com a cidade de Los Angeles, a fábrica dos sonhos indispensáveis a um país sem fronteiras internas.
Toda a dinâmica norte-americana é o movimento do Atlântico ao Pacífico. A "conquista do oeste" é a razão de ser do épico norte-americano. Nada a detém, nem as terras dos indígenas nem os territórios da Espanha e do México.
Não quero perder de vista a posição de um romance como "Los Ángeles-Sur", encruzilhada de caminhos desde o título, mas também encruzilhada de histórias, encruzilhada de gêneros, encruzilhada de propósitos.
Como a "road novel" de Kerouac, essa se desenrola ao longo de uma estrada, a Panamericana, que se estende da Califórnia ao Panamá e, cruzando Balboa e o istmo de Darien, interna-se no território maldito da Colômbia. Mas, diferentemente do romance de estrada norte-americano, o trabalho de Rosell é uma odisséia que se dirige ao sul, dos Estados Unidos à América Latina, à América Central, à Colômbia.
Rosell envia um chicano, um norte-americano de origem mexicana de Los Angeles, aos territórios que hoje não são dominados pelas armas militares americanas, mas pelas do crime organizado.
Dentro dessas fronteiras que se situa o drama de vingança, Vicente Blanco, El Roche, parte em vingança de seu irmão José, injustamente encarcerado pela Máfia colombiana.
Destaco a qualidade do ritmo narrativo de Rubio Rosell. Nos romances noir americanos, a velocidade da história excluía, em princípio, toda a referência ao passado do detetive, do olho privado, do agente de retribuição ou de justiça. O personagem criado por Rosell é nosso, é latino-americano, porque não consegue se libertar de seu passado.
"Los Ángeles-Sur" é testemunho de uma dupla invasão, do sul ao norte, do norte ao sul, que resulta atrozmente fatal, converte o crime em sinal e senha, e a vingança em resposta obrigatória. Rubio Rosell, com grande talento narrativo, permite que o oco entre a fatalidade e a vingança, entre o crime e o castigo, se preencha de maneira atrozmente sensual.
Jim Thompson, David Goodis, Chester Himes, Carl Hiaasen. A esses nomes da constelação do gênero é preciso acrescentar agora o do jovem mexicano Carlos Rubio Rosell, que vem enriquecê-la com uma paisagem moral e política, sentimental e plena de memórias, e livre, só porque narrar liberta, narrar define, narrar salva os restos do naufrágio.


Carlos Fuentes é mexicano, autor de "A Morte de Artemio Cruz", entre outros

Tradução Paulo Migliacci



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