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São Paulo, domingo, 28 de dezembro de 2003

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A fotógrafa Nan Goldin conta como transforma intimidade em arte

Além do Éden

MICHEL GUERRIN
DO "LE MONDE"

A norte-americana Nan Goldin, 49, em seu apartamento parisiense, segura na mão um livro de imagens que publicou sob o título "Le Terrain de Jeu du Diable" (A Quadra de Jogo do Diabo).
Na entrevista abaixo, a fotógrafa conta como transformou seu diário íntimo em imagens artísticas.

Pergunta - Como situar esse livro em sua obra?
Nan Goldin -
Ele começa onde o anterior terminou. É um diário íntimo que levei adiante. É uma sinfonia de alegrias e dores, ritmada por meu estado físico e mental, pelos amigos mortos, por outros que continuam aqui.

Pergunta - Essas pessoas fotografadas constituem sua família?
Goldin -
Algumas imagens mostram a dificuldade de comunicação numa família que eu não escolhi. Em Nova York, no final dos anos 70, encontrei uma comunidade de pessoas que tinham o hábito de se reunir. Não encontrei essa família na França, onde me sinto só. No livro eu mostro pessoas isoladas, casais autônomos. A ligação entre as pessoas sou eu. Fotografo-as no momento em que estou próxima delas, quando me tocam profundamente.

Pergunta - Seu compromisso estético parece ser o de fotografar pessoas em momentos extremos.
Goldin -
A base de meu trabalho é mostrar o que não é dito nas relações. Aos oito anos, iniciei um diário íntimo. Comecei a fazer fotos aos 15 anos, para enriquecer as palavras. Meu diário escrito fala só de mim, mas as fotos falam de minha relação com o outro.

Pergunta - Você se sente próxima dos álbuns de família?
Goldin -
As pessoas escondem numa gaveta as fotos íntimas, fotos de relações sexuais, e mostram suas paisagens e sua felicidade aparente. Faço o contrário. Mostro os casais fazendo amor. Muitos pintores já descreveram o orgasmo feminino, mas poucos fotógrafos o fizeram. Acho que também sou a primeira a mostrar uma mulher espancada numa foto que será vista como arte.
Durante muito tempo, perguntei como traduzir minha relação com a natureza. Até que um amigo me disse que meus temas vinham de outro planeta. As imagens se seguram porque, na outra página, há fotos feitas num centro de desintoxicação de dependentes de drogas. Está ali, é nu e cru. Existe o Éden, e o que vem depois dele.

Pergunta - Como é o livro?
Goldin -
Cada capítulo diz o que eu sinto e traduz uma ambivalência. Penso numa foto do World Trade Center, logo antes dos atentados e após a morte de meu gato, ou, ainda, na imagem de um céu em chamas após o suicídio de uma garota de 19 anos. E meus amantes, as crianças, os hospitais, a convivência com a Aids e há o capítulo "Éden", em homenagem a um filme de Robbe-Grillet.

Pergunta - Seu mundo interior é uma resposta ao mundo externo?
Goldin -
Sim. Aos cinco anos, ouvi o discurso "I have a dream" (Eu tenho um sonho), de Martin Luther King. Aos 14, saí de casa. Participei de passeatas até a Casa Branca, fiz oposição à guerra do Vietnã, fui a Woodstock, participei de reuniões feministas.
Quando Bush foi eleito, deixei os EUA e vim para a França. Quando penso na política americana, sinto náusea. O livro é uma maneira de lutar contra tudo o que este mundo se tornou. É meu mundo, o mundo em que vivo.


THE DEVIL'S PLAYGROUND ("Le Terrain de Jeu du Diable"). De: Nan Goldin. Editora: Phaidon Press Limited. Quanto: R$ 413,42. Onde encontrar: www.fnac.com.br.


Tradução Clara Allain


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