São Paulo, quarta-feira, 28 de dezembro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CINEMA

Personagem que inspirou a obra processa o diretor Rob Marshall por desrespeito à privacidade; à Folha, ele defende suas escolhas

"Memórias de uma Gueixa" cria polêmica

David James/Divulgação
As chinesas Ziyi Zhang e Gong Li em "Memórias de uma Gueixa", filme dirigido por Rob Marshall


SÉRGIO DÁVILA
ENVIADO ESPECIAL A NOVA YORK

Se existe um filme errado, feito no lugar errado, pelas pessoas erradas, este título parece pertencer a "Memórias de uma Gueixa", que chega ao Brasil em fevereiro. A adaptação do best-seller de Arthur Golden, dirigida pelo norte-americano Rob Marshall, com as chinesas Ziyi Zhang e Gong Li e a malasiana Michelle Yeoh nos papéis principais, estreou no dia 9 de dezembro mundialmente para uma enxurrada de críticas.
Não cinematográficas, embora estas também tenham existam. Críticas ao conceito, principalmente.
O longa é dirigido por Rob Marshall, que fez carreira na Broadway, especialmente no elogiado musical "Chicago", o que o levou a ser chamado em 2002 para dirigir a versão cinematográfica do mesmo, com Catherine Zeta-Jones e Renée Zellweger, feito na esteira do renascimento dos filmes do gênero, iniciada por "Moulin Rouge" (2001), de Baz Luhrmann. "Chicago", o filme, seria um sucesso de público (US$ 300 milhões de bilheteria mundial) e crítica (indicado a um recorde de 13 Oscars, levou seis, incluindo melhor filme). Isso colocou Marshall no páreo para dirigir "Gueixa", depois de Steven Spielberg desistir do projeto.
Em resumo, seu "Memórias de uma Gueixa" conta a vida da jovem Sayuri (Ziyi Zhang), menina de olhos azuis arrancada do convívio dos pais na vila de pescadores em que morava e levada para uma cidade grande, onde será treinada para ser gueixa com a experiente Mameha (Michelle Yeoh) e terá de enfrentar a rivalidade de Hatsumomo (Gong Li), ainda a profissional mais importante, mas claramente em fim de carreira. Ambas disputarão as atenções do Executivo (Ken Watanabe), e Saiyuri se apaixonará por ele, contrariando as regras.
O parágrafo acima esconde mais polêmicas do que exibe palavras. A elas.
Para a comunidade cinematográfica japonesa e chinesa, é um absurdo o fato de Marshall ter usado as três atrizes mais conhecidas do cinema chinês atual no papel de japonesas em vez de utilizar a mão-de-obra local. Foi criticado até pelo chinês Chen Kaige ("Adeus Minha Concubina"), que afirmou que suas conterrâneas não conseguiam captar as expressões faciais exigidas, "muito enraizados na cultura japonesa para serem interpretados por estrangeiras".
"Fizemos centenas de testes com atrizes em Tóquio e simplesmente não achamos nenhuma boa o suficiente", foi a resposta de Rob Marshall, em entrevista à Folha na época do lançamento do filme, na última semana de novembro, em Nova York. "Al Jolson interpretou um negro no primeiro filme falado da história, "O Cantor de Jazz'; isso diminuiu seu valor histórico?"
Para os chineses, o absurdo foi ver filhas da terra interpretando "prostitutas japonesas", num incidente diplomático que reavivou memórias pouco agradáveis da relação entre os dois países durante a Segunda Guerra Sino-Japonesa (1937-1945), quando milhares de chinesas teriam sido estupradas por soldados japoneses. Pequim ameaçou proibir a exibição do filme em território nacional -o governo depois voltaria atrás e prometeria a estréia para fevereiro, ainda não se sabe se na versão integral ou não.
Para Mineko Iwasaki, ex-gueixa que foi a principal inspiração para o livro de Arthur Golden, a revolta se deu em forma de um processo que ela move contra o autor e o diretor, por ter sua "privacidade desrespeitada". Ela não gostou de ver divulgada a prática da "mizuage", a venda da virgindade de uma jovem gueixa a quem der o lance mais alto, que teria contado "off the records".
A verdadeira história, diz ela, está em na sua biografia "Geisha of Gion - The Memoir of Mineko Iwasaki" (gueixa de Gion - a biografia de Mineko Iwasaki), que acaba de lançar. "Fui fiel ao que ela me disse", afirmou o escritor Golden, cujo livro vendeu 4 milhões de exemplares. "O fato é que agora todos querem ganhar um pouco de dinheiro com a publicidade em torno do filme."
Outros japoneses reclamaram da falta de compreensão dos ocidentais sobre a profissão. Gueixas, disseram críticos cinematográficos locais, não se vestiam da maneira mostrada no filme nem dançavam assim. Além disso, usavam uma camada espessa de pó branco no rosto, que foi abrandada por motivos comerciais por Marshall. "Seria um absurdo esconder da platéia os belos rostos das atrizes e suas inflexões", retrucou o americano.
Pois os belos rostos também defenderam seu diretor. "O filme fala de uma história de amor proibida, e eu acho que isso tem um interesse universal, que vai além de nacionalidades", disse à Folha Ziyi Zhang. Com ela concorda Michelle Yeoh, que tenta colocar um ponto final na discussão: "Eu sou da Malásia, ganhei fama em Hong Kong e interpretei uma "Bond Girl", num filme de um agente secreto britânico. Por que não posso ser uma gueixa?".
O fato é que, até agora, a polêmica mais tem ajudado os negócios do que atrapalhado. Segundo o site Box Office Mojo, "Memórias de Uma Gueixa" ficou em quinto lugar no feriado prolongado de Natal, com US$ 10 milhões acumulados, atrás apenas de blockbusters como "King Kong" e "Crônicas de Nárnia" e da refilmagem "Adivinhe Quem Vem para Roubar", com Jim Carrey, e a seqüência "Doze É Demais 2", com Steve Martin.

O jornalista Sérgio Dávila viajou a Nova York com os custos parcialmente cobertos pela Columbia Pictures


Texto Anterior: Programação
Próximo Texto: Crítica: Filme revela aos EUA um Oriente "higienizado"
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.