São Paulo, quarta-feira, 28 de dezembro de 2005

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ARTIGO

A inteligência fina de Dona Gilda

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Gilda de Mello e Souza foi professora de estética no departamento de filosofia na USP. Seus alunos a chamavam de dona Gilda. D. Gilda, 86, morreu no último domingo. É difícil alinhar algumas lembranças sob a emoção.
Ela, que escrevia tão bem, com uma elegância nada universitária, deixou raros escritos. São admiráveis, do livro sobre a moda a alguns contos, raros, redigidos há muito tempo. São poucos, no entanto, e por isso não oferecem a medida do que ela foi, intelectualmente, nem do que representou para seus alunos.
Em tempos de árduas modas teóricas, abstratas, presunçosas, D. Gilda indicava outros caminhos. Ensinava como pensar em modo "sensível", diante das obras, diante dos acontecimentos. Pelo exemplo, expunha esse instrumento tão poderoso para o conhecimento que é a intuição.
Tinha insights, tinha achados que iluminavam a compreensão de obras mais diferentes. Sempre me surpreendi que ela não tivesse publicado mais, multiplicado o número de ensaios, sua forma reflexiva favorita. D. Gilda era discreta em relação às suas próprias capacidades. Se os textos que dela nos ficaram são escassos, eles são modelos de capacidade analítica, de inteligência fina. São "clássicos", no sentido mais etimológico da palavra: aquilo que deve ser ensinado e estudado.
D. Gilda tinha uma certa timidez nas aulas. Mas adorava conversar. Com claro prazer, recebia, na sua casa da rua Briaxis, os alunos que se aproximavam dela. Sentava-se numa poltrona e falava sobre Chaplin ou Morandi, sobre um romance de André Mauriac ou de Zola. Evocava bastante seu parente e seu mentor, Mário de Andrade. Analisava um poema de "Losango Cáqui" ou um capítulo de "Macunaíma" de maneira deslumbrante -para empregar aqui uma palavra que ela usava e que sua voz carregava de intensidade.
Dona Gilda era afetuosa. O modo como olhava para uma obra tinha algo da ternura que demonstrava diante de suas netas ("com esse chapéu de palha que ela pôs, parece que saiu da "Carreira do Divino", não parece?"). Era também com afeto que se interessava pelos seus alunos, auxiliando-os na descoberta e na reflexão sobre a cultura. Apoiava-os, ainda, em momentos de crise pessoal, de problemas os mais diversos, alguns graves, muitos provocados pelas repressões nos tempos da ditadura militar.
Uma vez, eu tinha então uns 20 anos, D. Gilda escreveu uma carta de recomendação que lhe pedira. Generosa sempre, ela terminou referindo-se a mim como "alguém que considero meu discípulo". Sempre fiz, sempre faço, como posso, o esforço para merecer essa designação.


Jorge Coli é historiador da arte.

Professora de estética da USP, ensaísta e crítica de arte, Gilda de Mello e Souza morreu no domingo, aos 86 anos, vítima de embolia pulmonar. Era mulher do crítico literário Antonio Candido, com quem teve três filhas.


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