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A terceira morte de Zé do Caixão
Aos 70, José Mojica Marins finaliza sua trilogia de terror iniciada em 1964 com a fita "À Meia-Noite Levarei Sua Alma"; novo filme tem participação de Zé Celso e figurino de Herchcovitch
João Wainer/Folha Imagem
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O diretor José Mojica Marins, criador do Zé do Caixão
IVAN FINOTTI
EDITOR DO FOLHATEEN
Quarenta anos depois de "Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver", filmado em 1966 e lançado em 1967, José Mojica Marins, 70, finalmente terminou
sua trilogia com o personagem
Zé do Caixão, iniciada em 1964
com "À Meia-Noite Levarei Sua
Alma". Trata-se de "A Encarnação do Demônio", filme altamente violento no qual Zé do Caixão segue em sua busca para
conceber um filho com a mulher perfeita.
Mojica estava havia 20 anos
longe das câmeras, por não haver produtores interessados
em seus serviços. Até que o produtor Paulo Sacramento
("Amarelo Manga") e o diretor
independente Dennison Ramalho resolveram que Mojica
merecia filmar novamente.
Após seis anos de trabalho
-nos quais Ramalho reescreveu o roteiro com Mojica, e Sacramento captou R$ 1,9 milhão-, a fita foi iniciada em sociedade com a Gullane Filmes.
Com participação de Zé Celso e figurinos de Alexandre
Herchcovitch, os 40 dias de filmagens terminaram em 20 de
dezembro. José Mojica Marins
enfrentou diversos demônios
para finalizar sua trilogia. Alguns deles foram os bichos que
colocou na obra. Outro foi a
morte do amigo Jece Valadão
no meio das filmagens.
E ainda houve o tempo.
Quando Mojica realizou "Esta
Noite...", tinha 30 anos. Agora
tem 70. Nesses 40 anos, o jeito
de filmar mudou, a tecnologia
transformou as câmeras, e Mojica viu-se na frente de uma
equipe de 70 pessoas, quando
nunca havia usado mais de 15.
"Hoje em dia, para filmar
uma aranha é preciso ter certificado do Ibama", espanta-se o
cineasta, que, na entrevista a
seguir, fala sobre as filmagens e
comenta as diferenças entre o
cinema de 1966 e aquele feito
em 2006.
FOLHA - "A Encarnação do Demônio" parece ser muito mais violento
do que os filmes anteriores da trilogia. É isso mesmo?
JOSÉ MOJICA MARINS - Não digo
que o filme ultrapassou meus
limites, mas chegou lá. Poderia
até ultrapassar; só não fiz isso
porque senti uma certa estranheza da equipe. Sei lá, de repente a própria equipe pensaria que eu pertenço a uma seita
satânica. Eu vi eles olhando
com olhos diferentes.
FOLHA - Dê um exemplo.
MOJICA - O pessoal via torturas.
No dia seguinte, mais torturas.
Virava a noite e, se não eram
torturas, eram cenas realmente
com aranhas, ratos. A cena das
baratas foi a mais incrível.
Quem atuou na cena foi minha
companheira, Neide. Trouxeram um tratador que engolia a
barata e trazia ela de volta para
a boca. Mas o pessoal realmente se preveniu. Não há mulher
que não tenha medo. Salvam-se, entre todas elas, uns 3% ou
4%. E entre os homens, uns
60% pelo menos têm medo.
Porque a equipe era toda de
machão, e todo mundo ficou
morrendo de medo. Todos de
botas, de capas protetoras. Os
atores pedindo para ficar longe.
FOLHA - E o senhor?
MOJICA - Tudo o que eu mandei
os outros fazerem nas fitas anteriores, eu fiz agora. Nessa,
quem enfrenta as aranhas sou
eu. Quis ver o que tanto se falava. No passado eu tinha 30
anos. Agora, tenho 70. E enfrentei os 70 mandando colocar
as aranhas em mim. Você vê
aranhas me pisando nos olhos
abertos. Tivemos muitos vermes também. Tem um espectro
que me beija, com a boca toda
cheia de vermes.
FOLHA - Vermes de goiaba, como
em "À Meia-Noite..."?
MOJICA - Agora são vermes
criados para pescaria. Desta
vez, encontramos de tudo, pessoas que criavam até moscas. É
que eu não precisei colocar
mosca nos defuntos porque
meus defuntos não demoram
muito tempo. Já vão para os cachorros comer. Isso para mim
foi muito impressionante.
FOLHA - Os tempos mudaram para
o Zé do Caixão?
MOJICA - Agora tudo vem com
atestado do Ibama, as aranhas,
as cobras. Por incrível que pareça. O Brasil é país farto nisso
tudo, mas tem que vir do exterior. Porque o Ibama não deixa
usar espécies nativas.
FOLHA - Como foi trabalhar com
outra geração do cinema?
MOJICA - Setenta técnicos, uma
coisa incrível. Havia trabalhado
no máximo com 15, e já achava
muito. Setenta elementos competentes. Pensei que um ia passar em cima do outro, trombar,
mas não. Cada um tinha um setor diferente.
FOLHA - Então foi fácil se adaptar
ao século 21?
MOJICA - Entrei meio desconfiado, principalmente com o
Paulo Sacramento [produtor].
Porque, queira ou não, quem
entra na produção tem que ser
mão-de-vaca. Se não for do tipo
Tio Patinhas, não vai; tem que
segurar dinheiro. Pensei: "Esse
cara vai me brecar muita coisa".
Mas não. Me deram carta branca. Eles fazem tudo em "storyboard". Eu punha a câmera e
dizia: "Não vou fazer da maneira que está no "storyboard", vou
fazer melhor". Nunca questionaram nada. Fiquei muito feliz
com o trabalho do Paulo. E com
o do Dennison também. Ele é
bom. Em questão de coisas estranhas, ele é bom.
FOLHA - O que mais foi diferente
de como o senhor fazia há 40 anos?
MOJICA - Muita coisa foi feita
em plano-seqüência, como eles
chamam. Eu não sabia que chamava assim.
FOLHA - Como chamava?
MOJICA - Seqüência longa (risos). Tem um negócio nessa geração de querer muita coisa diferente. Estão acostumados a
plano-seqüência e fazem até
demais! Se usei cinco ou seis
vezes foi muito, porque não estou fazendo teatro. Usei o zoom
seis vezes na fita inteira. O pessoal que vem do cinema normal
usa zoom direto. Grua, usei
uma única vez. Mas tem outra
diferença. Entrei num negócio
que não conhecia bem: o som
direto. Sempre filmei com dublagem. Se antes eu errava no
plural, consertava na dublagem. Você sabe que eu engulo
muito o plural e troco o "l" pelo
"r". Com som direto, tive que
refazer várias cenas.
FOLHA - E na atuação?
MOJICA - Uma diferença enorme é com o bem-estar do ator.
Se preocupam muito com o ser
humano, para ninguém se machucar. Acho que é uma equipe
mais humanizada. No passado,
a equipe tinha muita raça, mas
hoje tem solidariedade. No passado, se o ator se arrebentava,
problema dele.
FOLHA - Como a tecnologia mudou
nesse 20 anos?
MOJICA - Eu vou parecer um cara desinformado, mas eu acho
que mudou para pior. Por quê?
Hoje você tem uma câmera de
uma nitidez fantástica, e isso
faz parte da evolução. Mas
quando se fala em filmar em foco, ela não tem uma profundidade. Você tem que saber exatamente a quantos centímetros
de distância a câmera está do
objeto filmado. Metade de um
centímetro já fica fora de foco.
No passado, você colocava em
foco e tinha uma profundidade
que podia usar. Esse tipo de
coisa, exata demais, passou a
complicar. Se o cara é amador
ou novato, é difícil demais de
conseguir. A tecnologia devia
facilitar as coisas.
FOLHA - No primeiro filme da trilogia, o senhor colocou purpurina no
negativo para criar uma aura em
volta de um fantasma. No segundo,
usou um truque para contracenar
consigo mesmo, abrindo a câmera e
tampando meia lente. Inventou algo agora?
MOJICA - Eu sempre vou inventar. Só não vou inventar quando partir para outra. O Spielberg fez o filme em preto-e-branco e, de repente, você vê o
colorido passando [em "A Lista
de Schindler"]. Nós aqui invertemos. Temos atores em preto-e-branco no cenário colorido.
Fizemos testes com cores, lentes e negativos até dar certo.
Mas tem que ter uma razão pra
isso: é quando o Zé está sendo
perseguido pelos espectros de
pessoas que ele matou. E você
vai ver essas pessoas do passado em preto-e-branco.
FOLHA - É o último filme do Zé do
Caixão?
MOJICA - Não.
FOLHA - Mas ele morre no final.
MOJICA - Em qual deles ele não
morre no final?
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