São Paulo, quinta-feira, 28 de dezembro de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A terceira morte de Zé do Caixão

Aos 70, José Mojica Marins finaliza sua trilogia de terror iniciada em 1964 com a fita "À Meia-Noite Levarei Sua Alma"; novo filme tem participação de Zé Celso e figurino de Herchcovitch

João Wainer/Folha Imagem
O diretor José Mojica Marins, criador do Zé do Caixão

IVAN FINOTTI
EDITOR DO FOLHATEEN

Quarenta anos depois de "Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver", filmado em 1966 e lançado em 1967, José Mojica Marins, 70, finalmente terminou sua trilogia com o personagem Zé do Caixão, iniciada em 1964 com "À Meia-Noite Levarei Sua Alma". Trata-se de "A Encarnação do Demônio", filme altamente violento no qual Zé do Caixão segue em sua busca para conceber um filho com a mulher perfeita.
Mojica estava havia 20 anos longe das câmeras, por não haver produtores interessados em seus serviços. Até que o produtor Paulo Sacramento ("Amarelo Manga") e o diretor independente Dennison Ramalho resolveram que Mojica merecia filmar novamente.
Após seis anos de trabalho -nos quais Ramalho reescreveu o roteiro com Mojica, e Sacramento captou R$ 1,9 milhão-, a fita foi iniciada em sociedade com a Gullane Filmes.
Com participação de Zé Celso e figurinos de Alexandre Herchcovitch, os 40 dias de filmagens terminaram em 20 de dezembro. José Mojica Marins enfrentou diversos demônios para finalizar sua trilogia. Alguns deles foram os bichos que colocou na obra. Outro foi a morte do amigo Jece Valadão no meio das filmagens.
E ainda houve o tempo.
Quando Mojica realizou "Esta Noite...", tinha 30 anos. Agora tem 70. Nesses 40 anos, o jeito de filmar mudou, a tecnologia transformou as câmeras, e Mojica viu-se na frente de uma equipe de 70 pessoas, quando nunca havia usado mais de 15.
"Hoje em dia, para filmar uma aranha é preciso ter certificado do Ibama", espanta-se o cineasta, que, na entrevista a seguir, fala sobre as filmagens e comenta as diferenças entre o cinema de 1966 e aquele feito em 2006.  

FOLHA - "A Encarnação do Demônio" parece ser muito mais violento do que os filmes anteriores da trilogia. É isso mesmo?
JOSÉ MOJICA MARINS
- Não digo que o filme ultrapassou meus limites, mas chegou lá. Poderia até ultrapassar; só não fiz isso porque senti uma certa estranheza da equipe. Sei lá, de repente a própria equipe pensaria que eu pertenço a uma seita satânica. Eu vi eles olhando com olhos diferentes.

FOLHA - Dê um exemplo.
MOJICA
- O pessoal via torturas. No dia seguinte, mais torturas. Virava a noite e, se não eram torturas, eram cenas realmente com aranhas, ratos. A cena das baratas foi a mais incrível. Quem atuou na cena foi minha companheira, Neide. Trouxeram um tratador que engolia a barata e trazia ela de volta para a boca. Mas o pessoal realmente se preveniu. Não há mulher que não tenha medo. Salvam-se, entre todas elas, uns 3% ou 4%. E entre os homens, uns 60% pelo menos têm medo. Porque a equipe era toda de machão, e todo mundo ficou morrendo de medo. Todos de botas, de capas protetoras. Os atores pedindo para ficar longe.

FOLHA - E o senhor?
MOJICA
- Tudo o que eu mandei os outros fazerem nas fitas anteriores, eu fiz agora. Nessa, quem enfrenta as aranhas sou eu. Quis ver o que tanto se falava. No passado eu tinha 30 anos. Agora, tenho 70. E enfrentei os 70 mandando colocar as aranhas em mim. Você vê aranhas me pisando nos olhos abertos. Tivemos muitos vermes também. Tem um espectro que me beija, com a boca toda cheia de vermes.

FOLHA - Vermes de goiaba, como em "À Meia-Noite..."?
MOJICA
- Agora são vermes criados para pescaria. Desta vez, encontramos de tudo, pessoas que criavam até moscas. É que eu não precisei colocar mosca nos defuntos porque meus defuntos não demoram muito tempo. Já vão para os cachorros comer. Isso para mim foi muito impressionante.

FOLHA - Os tempos mudaram para o Zé do Caixão?
MOJICA
- Agora tudo vem com atestado do Ibama, as aranhas, as cobras. Por incrível que pareça. O Brasil é país farto nisso tudo, mas tem que vir do exterior. Porque o Ibama não deixa usar espécies nativas.

FOLHA - Como foi trabalhar com outra geração do cinema?
MOJICA
- Setenta técnicos, uma coisa incrível. Havia trabalhado no máximo com 15, e já achava muito. Setenta elementos competentes. Pensei que um ia passar em cima do outro, trombar, mas não. Cada um tinha um setor diferente.

FOLHA - Então foi fácil se adaptar ao século 21?
MOJICA
- Entrei meio desconfiado, principalmente com o Paulo Sacramento [produtor]. Porque, queira ou não, quem entra na produção tem que ser mão-de-vaca. Se não for do tipo Tio Patinhas, não vai; tem que segurar dinheiro. Pensei: "Esse cara vai me brecar muita coisa". Mas não. Me deram carta branca. Eles fazem tudo em "storyboard". Eu punha a câmera e dizia: "Não vou fazer da maneira que está no "storyboard", vou fazer melhor". Nunca questionaram nada. Fiquei muito feliz com o trabalho do Paulo. E com o do Dennison também. Ele é bom. Em questão de coisas estranhas, ele é bom.

FOLHA - O que mais foi diferente de como o senhor fazia há 40 anos?
MOJICA
- Muita coisa foi feita em plano-seqüência, como eles chamam. Eu não sabia que chamava assim.

FOLHA - Como chamava?
MOJICA
- Seqüência longa (risos). Tem um negócio nessa geração de querer muita coisa diferente. Estão acostumados a plano-seqüência e fazem até demais! Se usei cinco ou seis vezes foi muito, porque não estou fazendo teatro. Usei o zoom seis vezes na fita inteira. O pessoal que vem do cinema normal usa zoom direto. Grua, usei uma única vez. Mas tem outra diferença. Entrei num negócio que não conhecia bem: o som direto. Sempre filmei com dublagem. Se antes eu errava no plural, consertava na dublagem. Você sabe que eu engulo muito o plural e troco o "l" pelo "r". Com som direto, tive que refazer várias cenas.

FOLHA - E na atuação?
MOJICA
- Uma diferença enorme é com o bem-estar do ator. Se preocupam muito com o ser humano, para ninguém se machucar. Acho que é uma equipe mais humanizada. No passado, a equipe tinha muita raça, mas hoje tem solidariedade. No passado, se o ator se arrebentava, problema dele.

FOLHA - Como a tecnologia mudou nesse 20 anos?
MOJICA
- Eu vou parecer um cara desinformado, mas eu acho que mudou para pior. Por quê? Hoje você tem uma câmera de uma nitidez fantástica, e isso faz parte da evolução. Mas quando se fala em filmar em foco, ela não tem uma profundidade. Você tem que saber exatamente a quantos centímetros de distância a câmera está do objeto filmado. Metade de um centímetro já fica fora de foco. No passado, você colocava em foco e tinha uma profundidade que podia usar. Esse tipo de coisa, exata demais, passou a complicar. Se o cara é amador ou novato, é difícil demais de conseguir. A tecnologia devia facilitar as coisas.

FOLHA - No primeiro filme da trilogia, o senhor colocou purpurina no negativo para criar uma aura em volta de um fantasma. No segundo, usou um truque para contracenar consigo mesmo, abrindo a câmera e tampando meia lente. Inventou algo agora?
MOJICA
- Eu sempre vou inventar. Só não vou inventar quando partir para outra. O Spielberg fez o filme em preto-e-branco e, de repente, você vê o colorido passando [em "A Lista de Schindler"]. Nós aqui invertemos. Temos atores em preto-e-branco no cenário colorido. Fizemos testes com cores, lentes e negativos até dar certo. Mas tem que ter uma razão pra isso: é quando o Zé está sendo perseguido pelos espectros de pessoas que ele matou. E você vai ver essas pessoas do passado em preto-e-branco.

FOLHA - É o último filme do Zé do Caixão?
MOJICA
- Não.

FOLHA - Mas ele morre no final.
MOJICA
- Em qual deles ele não morre no final?


Texto Anterior: Programação de TV
Próximo Texto: Mônica Bergamo
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.