São Paulo, Sábado, 29 de Janeiro de 2000


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O inferno de Ripley


José Nascimento/Folha Imagem
Os diretores Walter Salles (à esquerda) e Anthony Minghella, cujo novo filme, "O Talentoso Ripley", estréia em fevereiro no Brasil



Em entrevista a Walter Salles, Anthony Minghella fala sobre seu novo filme, que estréia no Brasil em 18 de fevereiro



WALTER SALLES
Colunista da Folha


O que um diretor faz após ganhar nove Oscar com o "Paciente Inglês"? "Shakespeare Apaixonado", por exemplo. Mas não Anthony Minghella. Recusou a oferta e preferiu mergulhar no universo muito mais inquietante e perturbador de Patricia Highsmith.
Não era uma opção sem riscos. Até por uma questão comparativa. Os livros de Highsmith já serviram de inspiração para grandes filmes: "Pacto Sinistro", o belíssimo longa de Hitchcock, "O Amigo Americano", um ótimo Wenders, e "Plein Soleil", de René Clément, este baseado no mesmo "O Talentoso Ripley", que Minghella adaptou e que estréia no Brasil em 18 de fevereiro.
No livro de Highsmith, Ripley é contratado para convencer o filho de um milionário a abandonar a Itália da "dolce vita" e voltar para a América. Os papéis se invertem e o enviado acaba se transformando no algoz do rapaz, Dickie.
Como ocorre no jazz, os textos e personagens de Highsmith parecem permitir leituras diferenciadas. Minghella fez do seu Ripley um filme sobre a exclusão e a questão da troca de identidade.
São situações que ele já viveu na pele. Filho de imigrantes italianos na Inglaterra, Minghella sabe como é difícil ser estrangeiro em uma sociedade engessada num rígido sistema de classes.
"Todos nós somos Ripley", propõe Minghella. Graças a esse ângulo de ataque, cria-se uma estranha empatia entre quem transgride e o espectador. Embaralham-se as questões do bem e do mal. Não há no filme qualquer julgamento moralista, e sim uma dissociação entre culpa e punição. O buraco é mais embaixo, e a dor, interiorizada. O assassino não terá nem sequer o prazer redentor de ser apanhado no final.
Professor universitário e depois autor teatral de sucesso, Minghella chega ao cinema em 1991 com "Um Romance do Outro Mundo". O filme chama a atenção do produtor Saul Zaentz, que lhe permite realizar "O Paciente Inglês".
Cinéfilo, articulado e sem nenhuma arrogância, Anthony Minghella recebeu a Folha para uma conversa descontraída em torno de Ripley, Kubrick, Fellini.

Folha - "Ripley" é de alguma forma o oposto e o complementar de "O Homem Errado". No filme de Hitchcock, o espectador acompanha um inocente, mas não consegue se identificar com ele. Já em "Ripley", seguimos um homem culpado, com o qual desenvolvemos uma inegável empatia. Esse foi um dos pontos de partida do filme?
Anthony Minghella -
Acho que uma das obrigações de um cineasta é a de não julgar os seus personagens. Não me lembro exatamente onde eu li que a única exigência do autor de ficção é ter compaixão, compaixão e compaixão.
O que há de bom no fato de etiquetar Ripley como sociopata, com quem não é possível se identificar? Somente reforçar a afirmação de que o mundo é composto de pessoas boas e pessoas ruins. E nunca nos incluímos no grupo de pessoas ruins. Ou seja, existe um grupo de pessoas com as quais não aprendemos nada e sentimos o alento de pertencer ao outro grupo, no qual nos sentimos virtuosos.
O que também acho interessante é que todos nós somos reféns do pecado de omissão e de perpetração. Todos nós fazemos mal ao outro no nosso desejo de impor a nossa vontade. Mesmo que essa vontade seja a de seguir a nossa forma de fazer o bem e de amar ao próximo.
Sempre tentei descobrir áreas de alegria e de dor nos personagens dos meus filmes. Saber por que elas surgem, por que acontecem, mas sempre com compaixão. Se não agirmos assim, nada há a aprender. E, nesse caso, a ficção torna-se uma afirmação constante do status quo. Ou seja, eu sou uma pessoa de bem, os outros são pessoas ruins. Com Ripley, essa possibilidade é tão real que o filme todo é uma luta constante para levá-lo a um local de reconhecimento e de familiaridade, e não de monstruosidade e de pesadelo.

Folha - Stanley Kubrick dizia que o melhor livro para inspirar um filme não é o romance de ação, tido apressadamente como "cinematográfico", e sim aqueles em que os personagens são densos e bem delineados. O que o levou a adaptar o livro de Highsmith?
Minghella -
Certamente a personalidade de Ripley. Ele faz parte de uma longa linhagem de estrangeiros, de excluídos, que tem origem em Albert Camus e na tragédia americana de Gatsby.
Eu me lembro claramente da primeira vez em que percebi que o ser humano é essencialmente só, apesar do profundo desejo de não estar só. Como conciliar isso com o fato de que ele se sente necessariamente excluído e que deseja se sentir incluído? A maneira de lidar com isso vai definir a pessoa e o rumo que vai tomar na vida. Esse é o drama de Ripley.

Folha - Você concorda com a idéia de que "Ripley" faz parte de uma tradição cinematográfica que investiga as questões da troca de identidade e da existência do duplo? É o caso do ""Kagemusha", de Kurosawa, ou de "Passageiro, Profissão Repórter", de Antonioni?
Minghella -
"Kagemusha" foi um dos filmes que mais me impressionaram, talvez pela ligação direta com o universo shakespeariano. Você reencontra Macbeth em vários filmes de Kurosawa e o reencontra novamente em Ripley, que por sua vez carrega consigo Caim e Abel. Também pensei muito em Proust, no sentido de que há uma profunda nostalgia no filme por uma vida que não será nunca vivida, uma existência que é apenas pressentida. No início de "A Procura do Tempo Perdido" existe um profundo sentimento de isolamento, próximo daquele que Ripley também ressente.

Folha - Você já disse que "todos nós somos Ripley". Em que medida você se vê projetado nesse personagem?
Minghella -
Esse é ao mesmo tempo o segredo do sucesso do filme e a razão do incômodo que ele gera. O problema é que os filmes estão cada vez mais presos a um molde, principalmente nos Estados Unidos. O que procuro num filme não é mais encontrado. Gosto de me sentir provocado por um filme. E então coloca-se a questão mais importante, que é a de saber para que serve um trabalho de ficção.
Houve um momento em que a ficção era somente uma vírgula dentro da vida das pessoas. Elas trabalhavam e conversavam com outras pessoas e tinham relacionamentos entre si. De vez em quando, um andarilho ou um contador de histórias chegava e provocava uma catarse, desafiando o status quo, narrando algum relato específico. O papel da ficção estava bem delimitado.
O que vemos agora é que a vida tornou-se uma vírgula dentro do parágrafo da ficção. Somos bombardeados com imagens de pessoas cujo discurso básico é dirigido à mídia. É o que se vê em novelas, filmes, revistas de personalidades e coisas do mesmo estilo. Sobra pouca vida de verdade nisso, e é esse mundo que está sendo reproduzido pelos filmes. Para que servem então as histórias?
Nos Estados Unidos, contar histórias passou a ter como objetivo reconfortar as pessoas. Nessas histórias, o mal é separado do bem. É possível escapar das situações. É sempre possível encontrar alguma forma de redenção.

Folha - Ripley colidiria de frente com a idéia americana de moralidade pública, tão prezada pelo discurso "politicamente correto"?
Minghella -
Sem dúvida. No final dos filmes tradicionais americanos, tudo deve estar nos seus devidos lugares. Qualquer dano que tenha sido causado deve ser eliminado, e as pessoas podem ir embora com a sensação de que ninguém saiu ferido. "Ripley", ao contrário, tem tudo a ver com a ferida. É o movimento em direção a essa chaga. É o louco que no final do filme tem consciência de que nada pode curá-lo.

Folha - No filme de Clément, o Ripley vivido por Alain Delon é preso no final. Aqui não. O que é feito da questão da culpa?
Minghella -
É uma marca indelével, como no purgatório de Dante. Uma mancha que não sai. Qual seria o destino de Ripley? Seria o de ser ele mesmo, pois durante tanto tempo ele desejou não ser ele próprio. É como se ele entrasse em um cômodo em que não há ninguém e do qual não consegue sair, mesmo que de forma metafórica. E Ripley acaba obrigado a matar aquilo que lhe traz a possibilidade de ser amado e, mais ainda, ser amado pelo que é. Haverá pessoas que vão aceitar o filme por causa disso e outras que vão rejeitá-lo por dizerem que o filme não tem final. "Onde está o final do filme?"
A expectativa dessas pessoas é a de que alguém vai entrar na sala e dizer "você está preso". É o desejo de um final, de um "fechamento" visível, de um desfecho dado pelo homem.

Folha - A música é quase um personagem do filme. Você pensou em organizar as cenas do roteiro como temas musicais que deságuam uns nos outros?
Minghella -
Para mim, é mais fácil pensar em cinema em termos de música do que de literatura, talvez porque fui músico. A idéia da música como ponto de encontro de todos os personagens do filme veio logo no início do processo.
Ripley aparece no filme com um manuscrito debaixo do braço, vestindo um paletó terrivelmente apertado. Ele parece travado, incapacitado de mergulhar na vida.
E então, nós descobrimos que ele não somente é um grande improvisador no piano, como também, que esta é a sua sina: na verdade, a única coisa que ele sabe fazer é improvisar, inventar variações sobre o mesmo tema.
Para mim, a essência do ato de escrever está ligada às variações de Bach. Escolhe-se um tema, para depois explorá-lo de forma maníaca.

Folha - Visualmente, há uma oposição interessante no filme entre a solaridade da Itália do final dos anos 50 e a escuridão que assola Ripley. "La Dolce Vita" e outros filmes daquela época serviram como inspiração?
Minghella -
Sem dúvida. "La Dolce Vita" é a história de um "outsider" que tenta ingressar à força num meio ao qual ele não pertence. Marcello Mastroiani interpreta um personagem crepuscular, trágico. Ele é um observador, um voyeur. Não é muito distante de Ripley, que é tomado por uma sensação semelhante de vazio. Visconti também foi um elemento importante para mim. "Morte em Veneza", aquela melancolia toda, não saía da minha cabeça.
A mesma coisa aconteceu com os filmes de Olmi, que é um diretor do qual gosto imensamente. "Ripley" deve muito mais ao cinema italiano do que a qualquer outra referência. O filme, aliás, é tanto sobre uma Itália idealizada quanto sobre a Itália em si.

Folha - Quando Fellini levou o roteiro de "Noites de Cabiria" para o seu produtor, ouviu o seguinte: "Primeiro você faz um filme sobre homossexuais ("Il Bidone", que não é na verdade sobre esse tema) e agora você me traz um projeto sobre prostitutas. Eu me pergunto sobre o quê será o seu próximo filme". E Fellini respondeu: "Sobre produtores". Então: qual é o seu próximo filme?
Minghella -
Será a adaptação de "Cold Mountain", um livro que ganhou o National Book Award, na América. É sobre um homem que vive uma odisséia tentando voltar para casa durante a Guerra de Secessão e uma mulher que vai ainda mais longe sem sair do lugar onde vive. Fiquei fascinado por essa oposição, por esse confronto entre o movimento e a imobilidade.

Folha - Depois de "O Paciente Inglês" e "O Talentoso Ripley", você não tem medo de se tornar prisioneiro de projetos grandes demais?
Minghella -
Estranhamente, as formas de criação e disseminação de filmes está se acelerando, enquanto meu metabolismo fílmico está se tornando mais lento. À medida que você faz filmes, você vai percebendo que cada elemento do quadro pode ser importante, vital. E você se torna compulsivo em relação a isso, torna se cada vez mais meticuloso.
A preparação, a filmagem, a montagem, tudo fica cada vez mais complexo. Quando você percebe as infinitas possibilidades de um filme, passa a entender porque tantos diretores param de fazer cinema. Uma das grandes tragédias de "De Olhos Bem Fechados" é que o filme é o resultado do trabalho de alguém que sabe demais.
Estou procurando maneiras de subverter minha própria compulsão, fazendo rabiscos, desenhos, e não somente quadros a óleo. Em outras palavras, documentários e não somente ficção.


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