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O inferno de Ripley
José Nascimento/Folha Imagem
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Os diretores Walter Salles (à esquerda) e Anthony Minghella, cujo novo filme, "O Talentoso Ripley", estréia em fevereiro no Brasil |
Em entrevista a Walter Salles, Anthony Minghella fala sobre seu novo filme, que estréia no Brasil em 18 de fevereiro
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WALTER SALLES
Colunista da Folha
O que um diretor faz após ganhar nove Oscar com o "Paciente
Inglês"? "Shakespeare Apaixonado", por exemplo. Mas não Anthony Minghella. Recusou a oferta e preferiu mergulhar no universo muito mais inquietante e perturbador de Patricia Highsmith.
Não era uma opção sem riscos.
Até por uma questão comparativa. Os livros de Highsmith já serviram de inspiração para grandes
filmes: "Pacto Sinistro", o belíssimo longa de Hitchcock, "O Amigo Americano", um ótimo Wenders, e "Plein Soleil", de René Clément, este baseado no mesmo "O
Talentoso Ripley", que Minghella
adaptou e que estréia no Brasil em
18 de fevereiro.
No livro de Highsmith, Ripley é
contratado para convencer o filho
de um milionário a abandonar a
Itália da "dolce vita" e voltar para
a América. Os papéis se invertem
e o enviado acaba se transformando no algoz do rapaz, Dickie.
Como ocorre no jazz, os textos e
personagens de Highsmith parecem permitir leituras diferenciadas. Minghella fez do seu Ripley
um filme sobre a exclusão e a
questão da troca de identidade.
São situações que ele já viveu na
pele. Filho de imigrantes italianos
na Inglaterra, Minghella sabe como é difícil ser estrangeiro em
uma sociedade engessada num rígido sistema de classes.
"Todos nós somos Ripley", propõe Minghella. Graças a esse ângulo de ataque, cria-se uma estranha empatia entre quem transgride e o espectador. Embaralham-se as questões do bem e do mal.
Não há no filme qualquer julgamento moralista, e sim uma dissociação entre culpa e punição. O
buraco é mais embaixo, e a dor,
interiorizada. O assassino não terá nem sequer o prazer redentor
de ser apanhado no final.
Professor universitário e depois
autor teatral de sucesso, Minghella chega ao cinema em 1991 com
"Um Romance do Outro Mundo". O filme chama a atenção do
produtor Saul Zaentz, que lhe
permite realizar "O Paciente Inglês".
Cinéfilo, articulado e sem nenhuma arrogância, Anthony
Minghella recebeu a Folha para
uma conversa descontraída em
torno de Ripley, Kubrick, Fellini.
Folha - "Ripley" é de alguma
forma o oposto e o complementar de "O Homem Errado". No
filme de Hitchcock, o espectador acompanha um inocente,
mas não consegue se identificar
com ele. Já em "Ripley", seguimos um homem culpado, com o
qual desenvolvemos uma inegável empatia. Esse foi um dos
pontos de partida do filme?
Anthony Minghella - Acho que
uma das obrigações de um cineasta é a de não julgar os seus
personagens. Não me lembro
exatamente onde eu li que a única
exigência do autor de ficção é ter
compaixão, compaixão e compaixão.
O que há de bom no fato de etiquetar Ripley como sociopata,
com quem não é possível se identificar? Somente reforçar a afirmação de que o mundo é composto de pessoas boas e pessoas
ruins. E nunca nos incluímos no
grupo de pessoas ruins. Ou seja,
existe um grupo de pessoas com
as quais não aprendemos nada e
sentimos o alento de pertencer ao
outro grupo, no qual nos sentimos virtuosos.
O que também acho interessante é que todos nós somos reféns
do pecado de omissão e de perpetração. Todos nós fazemos mal ao
outro no nosso desejo de impor a
nossa vontade. Mesmo que essa
vontade seja a de seguir a nossa
forma de fazer o bem e de amar ao
próximo.
Sempre tentei descobrir áreas
de alegria e de dor nos personagens dos meus filmes. Saber por
que elas surgem, por que acontecem, mas sempre com compaixão. Se não agirmos assim, nada
há a aprender. E, nesse caso, a ficção torna-se uma afirmação constante do status quo. Ou seja, eu
sou uma pessoa de bem, os outros
são pessoas ruins. Com Ripley, essa possibilidade é tão real que o
filme todo é uma luta constante
para levá-lo a um local de reconhecimento e de familiaridade, e
não de monstruosidade e de pesadelo.
Folha - Stanley Kubrick dizia
que o melhor livro para inspirar
um filme não é o romance de
ação, tido apressadamente como "cinematográfico", e sim
aqueles em que os personagens
são densos e bem delineados. O
que o levou a adaptar o livro de
Highsmith?
Minghella - Certamente a personalidade de Ripley. Ele faz parte
de uma longa linhagem de estrangeiros, de excluídos, que tem origem em Albert Camus e na tragédia americana de Gatsby.
Eu me lembro claramente da
primeira vez em que percebi que
o ser humano é essencialmente
só, apesar do profundo desejo de
não estar só. Como conciliar isso
com o fato de que ele se sente necessariamente excluído e que deseja se sentir incluído? A maneira
de lidar com isso vai definir a pessoa e o rumo que vai tomar na vida. Esse é o drama de Ripley.
Folha - Você concorda com a
idéia de que "Ripley" faz parte
de uma tradição cinematográfica que investiga as questões da
troca de identidade e da existência do duplo? É o caso do
""Kagemusha", de Kurosawa, ou
de "Passageiro, Profissão Repórter", de Antonioni?
Minghella - "Kagemusha" foi
um dos filmes que mais me impressionaram, talvez pela ligação
direta com o universo shakespeariano. Você reencontra Macbeth
em vários filmes de Kurosawa e o
reencontra novamente em Ripley, que por sua vez carrega consigo Caim e Abel. Também pensei
muito em Proust, no sentido de
que há uma profunda nostalgia
no filme por uma vida que não será nunca vivida, uma existência
que é apenas pressentida. No início de "A Procura do Tempo Perdido" existe um profundo sentimento de isolamento, próximo
daquele que Ripley também ressente.
Folha - Você já disse que "todos nós somos Ripley". Em que
medida você se vê projetado
nesse personagem?
Minghella - Esse é ao mesmo
tempo o segredo do sucesso do
filme e a razão do incômodo que
ele gera. O problema é que os filmes estão cada vez mais presos a
um molde, principalmente nos
Estados Unidos. O que procuro
num filme não é mais encontrado. Gosto de me sentir provocado
por um filme. E então coloca-se a
questão mais importante, que é a
de saber para que serve um trabalho de ficção.
Houve um momento em que a
ficção era somente uma vírgula
dentro da vida das pessoas. Elas
trabalhavam e conversavam com
outras pessoas e tinham relacionamentos entre si. De vez em
quando, um andarilho ou um
contador de histórias chegava e
provocava uma catarse, desafiando o status quo, narrando algum
relato específico. O papel da ficção estava bem delimitado.
O que vemos agora é que a vida
tornou-se uma vírgula dentro do
parágrafo da ficção. Somos bombardeados com imagens de pessoas cujo discurso básico é dirigido à mídia. É o que se vê em novelas, filmes, revistas de personalidades e coisas do mesmo estilo.
Sobra pouca vida de verdade nisso, e é esse mundo que está sendo
reproduzido pelos filmes. Para
que servem então as histórias?
Nos Estados Unidos, contar histórias passou a ter como objetivo
reconfortar as pessoas. Nessas
histórias, o mal é separado do
bem. É possível escapar das situações. É sempre possível encontrar
alguma forma de redenção.
Folha - Ripley colidiria de frente com a idéia americana de moralidade pública, tão prezada
pelo discurso "politicamente
correto"?
Minghella - Sem dúvida. No final dos filmes tradicionais americanos, tudo deve estar nos seus
devidos lugares. Qualquer dano
que tenha sido causado deve ser
eliminado, e as pessoas podem ir
embora com a sensação de que
ninguém saiu ferido. "Ripley", ao
contrário, tem tudo a ver com a
ferida. É o movimento em direção
a essa chaga. É o louco que no final do filme tem consciência de
que nada pode curá-lo.
Folha - No filme de Clément, o
Ripley vivido por Alain Delon é
preso no final. Aqui não. O que
é feito da questão da culpa?
Minghella - É uma marca indelével, como no purgatório de
Dante. Uma mancha que não sai.
Qual seria o destino de Ripley? Seria o de ser ele mesmo, pois durante tanto tempo ele desejou não
ser ele próprio. É como se ele entrasse em um cômodo em que
não há ninguém e do qual não
consegue sair, mesmo que de forma metafórica. E Ripley acaba
obrigado a matar aquilo que lhe
traz a possibilidade de ser amado
e, mais ainda, ser amado pelo que
é. Haverá pessoas que vão aceitar
o filme por causa disso e outras
que vão rejeitá-lo por dizerem
que o filme não tem final. "Onde
está o final do filme?"
A expectativa dessas pessoas é a
de que alguém vai entrar na sala e
dizer "você está preso". É o desejo
de um final, de um "fechamento"
visível, de um desfecho dado pelo
homem.
Folha - A música é quase um
personagem do filme. Você pensou em organizar as cenas do
roteiro como temas musicais
que deságuam uns nos outros?
Minghella - Para mim, é mais
fácil pensar em cinema em termos de música do que de literatura, talvez porque fui músico. A
idéia da música como ponto de
encontro de todos os personagens
do filme veio logo no início do
processo.
Ripley aparece no filme com um
manuscrito debaixo do braço,
vestindo um paletó terrivelmente
apertado. Ele parece travado, incapacitado de mergulhar na vida.
E então, nós descobrimos que
ele não somente é um grande improvisador no piano, como também, que esta é a sua sina: na verdade, a única coisa que ele sabe fazer é improvisar, inventar variações sobre o mesmo tema.
Para mim, a essência do ato de
escrever está ligada às variações
de Bach. Escolhe-se um tema, para depois explorá-lo de forma maníaca.
Folha - Visualmente, há uma
oposição interessante no filme
entre a solaridade da Itália do final dos anos 50 e a escuridão
que assola Ripley. "La Dolce Vita" e outros filmes daquela época serviram como inspiração?
Minghella - Sem dúvida. "La
Dolce Vita" é a história de um
"outsider" que tenta ingressar à
força num meio ao qual ele não
pertence. Marcello Mastroiani interpreta um personagem crepuscular, trágico. Ele é um observador, um voyeur. Não é muito distante de Ripley, que é tomado por
uma sensação semelhante de vazio. Visconti também foi um elemento importante para mim.
"Morte em Veneza", aquela melancolia toda, não saía da minha
cabeça.
A mesma coisa aconteceu com
os filmes de Olmi, que é um diretor do qual gosto imensamente.
"Ripley" deve muito mais ao cinema italiano do que a qualquer outra referência. O filme, aliás, é tanto sobre uma Itália idealizada
quanto sobre a Itália em si.
Folha - Quando Fellini levou o
roteiro de "Noites de Cabiria"
para o seu produtor, ouviu o seguinte: "Primeiro você faz um
filme sobre homossexuais ("Il
Bidone", que não é na verdade
sobre esse tema) e agora você
me traz um projeto sobre prostitutas. Eu me pergunto sobre o
quê será o seu próximo filme". E
Fellini respondeu: "Sobre produtores". Então: qual é o seu
próximo filme?
Minghella - Será a adaptação de
"Cold Mountain", um livro que
ganhou o National Book Award,
na América. É sobre um homem
que vive uma odisséia tentando
voltar para casa durante a Guerra
de Secessão e uma mulher que vai
ainda mais longe sem sair do lugar onde vive. Fiquei fascinado
por essa oposição, por esse confronto entre o movimento e a
imobilidade.
Folha - Depois de "O Paciente
Inglês" e "O Talentoso Ripley",
você não tem medo de se tornar
prisioneiro de projetos grandes
demais?
Minghella - Estranhamente, as
formas de criação e disseminação
de filmes está se acelerando, enquanto meu metabolismo fílmico
está se tornando mais lento. À
medida que você faz filmes, você
vai percebendo que cada elemento do quadro pode ser importante, vital. E você se torna compulsivo em relação a isso, torna se cada
vez mais meticuloso.
A preparação, a filmagem, a
montagem, tudo fica cada vez
mais complexo. Quando você
percebe as infinitas possibilidades
de um filme, passa a entender
porque tantos diretores param de
fazer cinema. Uma das grandes
tragédias de "De Olhos Bem Fechados" é que o filme é o resultado do trabalho de alguém que sabe demais.
Estou procurando maneiras de
subverter minha própria compulsão, fazendo rabiscos, desenhos, e
não somente quadros a óleo. Em
outras palavras, documentários e
não somente ficção.
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