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RESENHA DA SEMANA
Lágrimas de crocodilo
BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha
Os romances
do português
António Lobo
Antunes, 57, são
feitos de frases e
parágrafos abortados, que terminam por formar, nessa composição fragmentária de interrupções, uma
trama complexa, revelando os
sentidos mais surpreendentes.
Ao jogar com uma simultaneidade de tempos, que parece
mimetizar os mecanismos da
memória num estado ambíguo
de pesadelo, essas narrativas
contam as coisas mais inesperadas, de repente, escondidas
no meio de outras insignificantes. E, aos poucos, por meio
desse enorme quebra-cabeças
romanesco, o leitor começa a
vislumbrar a imagem de um
mundo onde a hipocrisia é um
dos fundamentos.
Não é uma tarefa simples ou
passiva, como a de quem se
prostra diante de uma tela de
televisão. São livros que exigem
uma leitura ativa num jogo de
combinações em princípio
muito nebulosas. São livros
que propõem uma leitura inteligente, cuja recompensa é um
prazer sempre renovado: um
mundo em que podem ser descobertos novos segredos a cada
releitura, em retrospecto, a
partir do instante em que se
conquista a chave final.
Os livros de Lobo Antunes
não entregam esse mundo de
imediato. Primeiro, abrem
apenas frestas, por onde se tem
uma visão parcial da realidade
narrada. As visões vão se acumulando de maneira entrecortada, são interrompidas justamente no momento em que
deixariam de ser visões parciais
para se tornar revelações, que
são sempre postergadas.
E assim, por diferentes pontos de vista e pela voz de diferentes personagens, vai surgindo gradualmente uma dimensão tão mais real por oferecer
várias portas de entrada, uma
dimensão enigmática que parece de fato existir por trás das
palavras.
Em "Exortação aos Crocodilos", mais recente romance de
Lobo Antunes publicado em
Portugal -a Rocco, que edita
as obras do escritor no Brasil,
como o recente "O Esplendor
de Portugal" ainda não adquiriu os direitos do livro-, quatro mulheres contam uma história terrível, semeando revelações pelo caminho, enquanto
misturam as lembranças remotas, da infância de cada
uma, com um passado mais recente, em que servem a um
grupo de homens de extrema
direita, salazaristas saudosos,
que organizam atentados contra a democracia, produzindo
bombas caseiras e se encarregando de raptar, torturar e desaparecer com "comunistas".
É possível ver aqui uma referência ao thriller político "Balada da Praia dos Cães", de José
Cardoso Pires, romancista português morto em 1998, de
quem Lobo Antunes é declarado admirador. A organização
integrista clandestina é formada por um general, um dono de
hotéis e seu motorista, um oficial da marinha e um bispo.
Além das quatro narradoras: a
viúva do sócio assassinado do
dono de hotéis; a mulher surda
do dono de hotéis; a "afilhada"
(e amante) do bispo e a namorada obesa do motorista encarregado da confecção das bombas.
Vem a calhar que esse texto
seja feito de estilhaços, e que
nele o leitor construa a imagem
de um mundo por suas impressões fragmentadas. Lobo
Antunes é psiquiatra de formação e sua ficção parece mimetizar as ondas cerebrais num estado em que a consciência é
dúbia, em que há simultaneidade de tempos e ocorrências,
em que não dá para saber ao
certo o que é realidade e o que é
metáfora. Um estado febril,
que só se dissipa com a surpresa final, diante da morte.
Uma narrativa enumerativa,
sincopada e progressiva, que
vai sobrepondo momentos, fatos e objetos da memória, entrecortados pela recordação de
outros momentos, fatos e objetos numa espécie de processo
de livre-associação em que o
sentido vem do acúmulo,
quando por fim se constata,
com espanto, o que aconteceu
realmente por trás da nebulosa
da memória.
É uma construção narrativa
em suspense, já que as frases e
parágrafos se interrompem no
momento em que estão para
dizer algo. "Não diga nada" é,
aliás, um dos vários refrões do
texto e define não apenas o
princípio do comportamento
hipócrita e a base dessa atividade terrorista e clandestina que
acaba se invertendo contra si
mesma, mas também a fórmula da traição e do costume de
enterrar os próprios podres às
escondidas.
A certa altura, a namorada do
motorista lembra-se de quando lhe perguntaram na escola,
em criança, o que era a pátria.
A que ela respondeu: "São caixas de mármore com pedacinhos de manto, caveiras, coisas
mortas", antes de ser corrigida
por uma amiguinha, que lhe
esclarece que a pátria é "onde a
gente nasceu". Lobo Antunes
tem outra resposta: a pátria
éonde tudo é feito às escondidas, o lugar das traições e da hipocrisia, onde choram os crocodilos.
Avaliação: 
Livro: Exortação aos Crocodilos
Autor: António Lobo Antunes
Editora: Publicações Dom Quixote
Quanto: R$ 62,44 (378 págs.)
Onde encomendar: Livraria
Portugal (r. Genebra, 165, tel. 0/xx/
11/3104-1748)
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