São Paulo, sábado, 29 de janeiro de 2005

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CRÍTICA

Vila-Matas trata do mal das letras contemporâneas

ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Bartleby e Companhia", de Enrique Vila-Matas, remete a uma série de textos precursores. Os mais óbvios são os contos de Jorge Luis Borges. A idéia utilizada no livro, escrever notas de rodapé para uma narrativa inexistente, deriva da estratégia ficcional que consagrou o autor argentino -resenhar, resumir, analisar livros inexistentes em vez de conceber longos romances.
O título se refere ao protagonista da fundamental novela de Herman Melville, "Bartleby" (já publicada no Brasil por editoras como a Record e a Rocco), na qual um copista de Nova York responde "I would prefer not to" (Preferia não fazê-lo) a tudo que o pedem. Essa recusa absoluta é transformada pelo escritor-personagem de Vila-Matas em uma síndrome, "o mal endêmico das letras contemporâneas", "que faz com que certos criadores (...) nunca cheguem a escrever, ou então escrevam um ou dois livros e depois renunciem à escrita".
Ao longo de 86 notas, ele conta e comenta a história de autores -Hofmannsthal, Rimbaud, Walser, Rulfo, Pynchon e Salinger, entre muitos outros- que "sofreram" ou "sofrem" da tal síndrome, inserindo nelas breves relatos ficcionais, como o do próprio protagonista e autor da pesquisa, também um "doente", pois ficara 25 anos, "após sofrer um trauma", sem escrever, tornara-se um "bartleby".
Essa convivência entre ficção e não-ficção, uma das principais e mais complexas tendências da literatura contemporânea, é bastante problemática no livro. De modo geral, a primeira sempre acaba por contaminar a segunda, ou seja, se estão "misturadas", o texto necessariamente se torna, em última instância, ficcional. Mas, no caso em questão, seria legítimo perguntar: por que não um ensaio?, por que não o autor "real" em vez do autor "inventado"?
Isso pelo menos pouparia o leitor de um parágrafo -ligado à "área fictícia"- como o seguinte: "Em resumo, tampouco ouse aproximar-me de Shirley para dizer-lhe uma coisa dessas. Ela teria me mandado plantar batatas, algo difícil de fazer, pois como plantar batatas na Quinta Avenida de Nova York?".
Uma resposta possível para a pergunta constataria que, com a ficção, entra em cena com muito mais força a ironia, figura chave da forma romanesca. Isso ficaria evidente já a partir da idéia de escrever um livro sobre autores que desistem de escrever livros.
A ironia, contudo, perpassa, ou deveria perpassar, qualquer trabalho do gênero, por princípio. Aqui, a autoconsciência do texto parece lutar para sobreviver ao excesso de consciência literária de Vila-Matas. A impressão de que se está lidando com um autor que busca, a todo momento e por meio de variados artifícios, impor a sua intenção -exercer o controle da ficção- é inevitável ao longo de "Bartleby e Companhia", o que gera uma contínua zona de atrito entre as histórias narradas e a própria textura da narrativa.
Para citar um exemplo inusitado, pode-se pegar o caso do nome do protagonista, Marcelo. Ele aparece apenas uma vez em toda a obra, na página 52. Quem fizer uma pesquisa na internet a respeito da repercussão de "Bartleby e Companhia" verá como vários resenhistas mencionam o fato e buscam implicações, em uma espécie de "pegadinha" do autor que poderia até se divertir com isso, contando o número de leitores que caíram no truque (desnecessário dizer que esta resenha não escapou dele, o que só reforça a ubiqüidade da ironia).
Enfim, não é difícil concordar com o narrador quando ele mesmo afirma que "em uma descrição bem-feita, ainda que obscena, há algo de moral: a vontade de dizer a verdade. Quando se usa a linguagem para simplesmente obter um efeito, para não ir mais longe do que nos é permitido, incorre-se paradoxalmente em um ato imoral".
Se o efeito previsto é o de levantar problemas, então talvez o sentido desta resenha devesse ser invertido, aí ela poderia significar o oposto do que pretende. Mas, por outro lado, se se pode dizer que a ficção de Jorge Luis Borges promove uma celebração da literatura, quem sabe não seja de todo injusto afirmar que este texto-discípulo, "Bartleby e Companhia", promove, de modo inteligente e criativo, uma celebração da vaidade.
Em "O Mal de Montano", livro seguinte de Vila-Matas, que também deve ser lançado em breve no Brasil, isso não acontece: parodiando a frase famosa, conclui-se que, de novo, "o autor morreu, viva o autor!"


Adriano Schwartz é doutor em teoria literária pela USP e autor de "O Abismo Invertido - Pessoa, Borges e a Inquietude do Romance em "O Ano da Morte de Ricardo Reis'" (ed. Globo).

Bartleby e Companhia
  
Autor: Enrique Vila-Matas
Editora: Cosac Naify
Quanto: R$ 39 (188 págs.)


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