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CRÍTICA
Vila-Matas trata do mal das letras contemporâneas
ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA
"Bartleby e Companhia",
de Enrique Vila-Matas, remete a uma série de textos precursores. Os mais óbvios são os contos de Jorge Luis Borges. A idéia
utilizada no livro, escrever notas
de rodapé para uma narrativa inexistente, deriva da estratégia ficcional que consagrou o autor argentino -resenhar, resumir,
analisar livros inexistentes em vez
de conceber longos romances.
O título se refere ao protagonista da fundamental novela de Herman Melville, "Bartleby" (já publicada no Brasil por editoras como a Record e a Rocco), na qual
um copista de Nova York responde "I would prefer not to" (Preferia não fazê-lo) a tudo que o pedem. Essa recusa absoluta é transformada pelo escritor-personagem de Vila-Matas em uma síndrome, "o mal endêmico das letras contemporâneas", "que faz
com que certos criadores (...)
nunca cheguem a escrever, ou então escrevam um ou dois livros e
depois renunciem à escrita".
Ao longo de 86 notas, ele conta e
comenta a história de autores
-Hofmannsthal, Rimbaud, Walser, Rulfo, Pynchon e Salinger, entre muitos outros- que "sofreram" ou "sofrem" da tal síndrome, inserindo nelas breves relatos
ficcionais, como o do próprio
protagonista e autor da pesquisa,
também um "doente", pois ficara
25 anos, "após sofrer um trauma", sem escrever, tornara-se um
"bartleby".
Essa convivência entre ficção e
não-ficção, uma das principais e
mais complexas tendências da literatura contemporânea, é bastante problemática no livro. De
modo geral, a primeira sempre
acaba por contaminar a segunda,
ou seja, se estão "misturadas", o
texto necessariamente se torna,
em última instância, ficcional.
Mas, no caso em questão, seria legítimo perguntar: por que não um
ensaio?, por que não o autor
"real" em vez do autor "inventado"?
Isso pelo menos pouparia o leitor de um parágrafo -ligado à
"área fictícia"- como o seguinte:
"Em resumo, tampouco ouse
aproximar-me de Shirley para dizer-lhe uma coisa dessas. Ela teria
me mandado plantar batatas, algo
difícil de fazer, pois como plantar
batatas na Quinta Avenida de Nova York?".
Uma resposta possível para a
pergunta constataria que, com a
ficção, entra em cena com muito
mais força a ironia, figura chave
da forma romanesca. Isso ficaria
evidente já a partir da idéia de escrever um livro sobre autores que
desistem de escrever livros.
A ironia, contudo, perpassa, ou
deveria perpassar, qualquer trabalho do gênero, por princípio.
Aqui, a autoconsciência do texto
parece lutar para sobreviver ao
excesso de consciência literária de
Vila-Matas. A impressão de que
se está lidando com um autor que
busca, a todo momento e por
meio de variados artifícios, impor
a sua intenção -exercer o controle da ficção- é inevitável ao
longo de "Bartleby e Companhia", o que gera uma contínua
zona de atrito entre as histórias
narradas e a própria textura da
narrativa.
Para citar um exemplo inusitado, pode-se pegar o caso do nome
do protagonista, Marcelo. Ele
aparece apenas uma vez em toda
a obra, na página 52. Quem fizer
uma pesquisa na internet a respeito da repercussão de "Bartleby
e Companhia" verá como vários
resenhistas mencionam o fato e
buscam implicações, em uma espécie de "pegadinha" do autor
que poderia até se divertir com isso, contando o número de leitores
que caíram no truque (desnecessário dizer que esta resenha não
escapou dele, o que só reforça a
ubiqüidade da ironia).
Enfim, não é difícil concordar
com o narrador quando ele mesmo afirma que "em uma descrição bem-feita, ainda que obscena,
há algo de moral: a vontade de dizer a verdade. Quando se usa a
linguagem para simplesmente
obter um efeito, para não ir mais
longe do que nos é permitido, incorre-se paradoxalmente em um
ato imoral".
Se o efeito previsto é o de levantar problemas, então talvez o sentido desta resenha devesse ser invertido, aí ela poderia significar o
oposto do que pretende. Mas, por
outro lado, se se pode dizer que a
ficção de Jorge Luis Borges promove uma celebração da literatura, quem sabe não seja de todo injusto afirmar que este texto-discípulo, "Bartleby e Companhia",
promove, de modo inteligente e
criativo, uma celebração da vaidade.
Em "O Mal de Montano", livro
seguinte de Vila-Matas, que também deve ser lançado em breve
no Brasil, isso não acontece: parodiando a frase famosa, conclui-se
que, de novo, "o autor morreu, viva o autor!"
Adriano Schwartz é doutor em teoria literária pela USP e autor de "O Abismo Invertido - Pessoa, Borges e a Inquietude
do Romance em "O Ano da Morte de Ricardo Reis'" (ed. Globo).
Bartleby e Companhia
Autor: Enrique Vila-Matas
Editora: Cosac Naify
Quanto: R$ 39 (188 págs.)
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