São Paulo, sábado, 29 de janeiro de 2005

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FERNANDO GABEIRA

Goya e os desastres da guerra no Iraque

Depois de um desastre quase fatal numa auto-estrada do deserto australiano, muitas operações e tempo de hospital, Robert Hughes, um dos mais conhecidos críticos de arte, resolveu escreveu um livro sobre Goya, Francisco de Goya y Lucientes, genial pintor espanhol.
É um livro de 430 páginas (ed. The Harvill Press), um bom companheiro neste verão e que sempre esteve na cabeça de Hughes. A decisão de escrevê-lo veio depois de todo esse sofrimento com o desastre e ele acha que veio no momento justo: o escritor que não conhece medo, dor e desespero não conhece plenamente Goya.
Não tenho a pretensão de contestar as teses de Hughes sobre o pintor espanhol, que morreu em 1828. Uma delas, no entanto, estimulou uma pequena anotação. Hughes afirma que os séculos depois de Goya não conseguiram, apesar dos seus conflitos destrutivos, apresentar nem a sombra do trabalho de Goya, contida na série "Os Desastres da Guerra".
Como tinha muito mais coisas para dizer, Hughes foi adiante sem ao menos citar Picasso com sua "Guernica". Isso não é o mais importante aqui, embora a força de "Guernica" seja um marco da arte moderna. O que vale a pena comparar são as condições do século 18, em que Goya era financiado pela aristocracia, os Bourbons, e as dos tempos atuais. Do uso das pequenas câmeras a partir da Segunda Guerra ao período que avança até nossos dias, a monumental tarefa de Goya de estigmatizar a guerra foi realizada não só por pintores mas por fotógrafos, trabalhando num ritmo industrial. De Robert Capa, que já morreu, a James Nachtwey, ainda em atividade, uma dezena de grandes talentos produziram imagens mais do que suficientes para condenar, eternamente, o esforço de guerra.
Nenhum deles, evidentemente, pode ser comparado a Goya, que era um gênio e, além disso, podia criar as imagens com calma, definindo cores e composição. Fotógrafos de guerra trabalham com a realidade como ela acontece. Tem pouca flexibilidade não só porque os fatos não se repetem mas porque toda a situação é perigosa. Cada ângulo tem de ser examinado também sob o prisma da sobrevivência.
Fotos consagradas desses profissionais, muitas vezes, estão ligeiramente fora de foco. Aliás, uma das exposições de Capa em Paris leva este título: "Ligeiramente Fora de Foco". Apesar de qualquer dificuldade técnica, eles estavam dentro da cena, bem perto. É muito conhecida a frase de Capa: "Se a foto não está boa, é porque não se chegou perto o bastante".
Isso não significa que Goya tenha tirado do nada seu libelo contra a guerra. Muito possivelmente teria assistido a execuções numa colina de Madri, chamada montanha do Príncipe Pio. Seus quadros sobre a fabricação de balas e a fabricação de pólvora, que estão hoje no palácio da Zarzuela, em Madri, revelam detalhes de quem pôde observar os processos na serra de Tardienta.
Essa comparação entre os fotógrafos de guerra e Goya talvez fosse um pouco mais consistente se, desde a Guerra do Golfo, não tivessem surgido novas diretrizes por parte do Exército americano. A experiência do Vietnã, onde precisamente as imagens tiveram um grande papel na rejeição da guerra, foi aprendida. Restrições ao livre trânsito de fotógrafos ou mesmo sua integração às tropas, como se fossem soldados, contribuíram para reduzir o potencial de denúncia.
Na atual Guerra do Iraque, as restrições norte-americanas são multiplicadas pelos grupos armados que tratam a todos como invasores estrangeiros, seqüestrando e, às vezes, metralhando indiscriminadamente, jornalistas e técnicos. Isso criou um jornalismo de hotel, diz Robert Fisk, um gênero em que a matéria é feita sem que as pessoas cheguem perto. Trabalho possível para o repórter, mas não o é para o fotógrafo.
Seymour M. Hersh poderia ter escrito sua história sobre a prisão de Abu Ghraib. Mas sem as fotos tiradas pelos soldados a repercussão seria muito menor. Uma das singularidades do nosso tempo. Não produzimos mais o talento de Goya para descrever os desastres da guerra. Mas temos à disposição formidáveis meios técnicos para produzir e transmitir imagens. A visão de um simples soldado, mediada por uma câmera com cerca de 1 milhão de megapixels, sacode o mundo de uma forma que não era possível a Goya, em sua época.
Entre as cenas de guerra entre espanhóis e franceses no Museu do Prado e a morte de um soldado na guerra civil, fotografada por Capa, vai, talvez, uma grande distância estética. Mas o grito dos artistas, com seus limites e circunstâncias, atravessa as épocas, marco zero de nossa cultura da paz.
São apenas anotações ao pé das páginas de Robert Hughes. Não creio que descartasse integralmente o argumento. Num certo momento do livro, cita como exemplo de imagem de guerra, aquela célebre foto do chefe de polícia vietnamita fuzilando um preso à queima-roupa.
O desafio dos senhores da guerra, desde a Guerra do Golfo, é não somente impedir que os Capas cheguem muito perto da cena mas produzir um espetáculo de luz e cor que nos seduza nos jornais noturnos da televisão. Algumas pequenas batalhas conseguem ganhar. Nesse sentido, Abu Ghraib foi o seu Waterloo e um triunfo póstumo de Francisco de Goya y Lucientes. E por que não de Pablo Picasso?


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