|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
FERNANDO GABEIRA
Goya e os desastres da guerra no Iraque
Depois de um desastre quase fatal numa auto-estrada
do deserto australiano, muitas
operações e tempo de hospital,
Robert Hughes, um dos mais conhecidos críticos de arte, resolveu
escreveu um livro sobre Goya,
Francisco de Goya y Lucientes,
genial pintor espanhol.
É um livro de 430 páginas (ed.
The Harvill Press), um bom companheiro neste verão e que sempre esteve na cabeça de Hughes. A
decisão de escrevê-lo veio depois
de todo esse sofrimento com o desastre e ele acha que veio no momento justo: o escritor que não
conhece medo, dor e desespero
não conhece plenamente Goya.
Não tenho a pretensão de contestar as teses de Hughes sobre o
pintor espanhol, que morreu em
1828. Uma delas, no entanto, estimulou uma pequena anotação.
Hughes afirma que os séculos depois de Goya não conseguiram,
apesar dos seus conflitos destrutivos, apresentar nem a sombra do
trabalho de Goya, contida na série "Os Desastres da Guerra".
Como tinha muito mais coisas
para dizer, Hughes foi adiante
sem ao menos citar Picasso com
sua "Guernica". Isso não é o mais
importante aqui, embora a força
de "Guernica" seja um marco da
arte moderna. O que vale a pena
comparar são as condições do século 18, em que Goya era financiado pela aristocracia, os Bourbons, e as dos tempos atuais. Do
uso das pequenas câmeras a partir da Segunda Guerra ao período
que avança até nossos dias, a monumental tarefa de Goya de estigmatizar a guerra foi realizada
não só por pintores mas por fotógrafos, trabalhando num ritmo
industrial. De Robert Capa, que
já morreu, a James Nachtwey,
ainda em atividade, uma dezena
de grandes talentos produziram
imagens mais do que suficientes
para condenar, eternamente, o
esforço de guerra.
Nenhum deles, evidentemente,
pode ser comparado a Goya, que
era um gênio e, além disso, podia
criar as imagens com calma, definindo cores e composição. Fotógrafos de guerra trabalham com a
realidade como ela acontece. Tem
pouca flexibilidade não só porque
os fatos não se repetem mas porque toda a situação é perigosa.
Cada ângulo tem de ser examinado também sob o prisma da sobrevivência.
Fotos consagradas desses profissionais, muitas vezes, estão ligeiramente fora de foco. Aliás, uma
das exposições de Capa em Paris
leva este título: "Ligeiramente Fora de Foco". Apesar de qualquer
dificuldade técnica, eles estavam
dentro da cena, bem perto. É muito conhecida a frase de Capa: "Se
a foto não está boa, é porque não
se chegou perto o bastante".
Isso não significa que Goya tenha tirado do nada seu libelo
contra a guerra. Muito possivelmente teria assistido a execuções
numa colina de Madri, chamada
montanha do Príncipe Pio. Seus
quadros sobre a fabricação de balas e a fabricação de pólvora, que
estão hoje no palácio da Zarzuela, em Madri, revelam detalhes de
quem pôde observar os processos
na serra de Tardienta.
Essa comparação entre os fotógrafos de guerra e Goya talvez fosse um pouco mais consistente se,
desde a Guerra do Golfo, não tivessem surgido novas diretrizes
por parte do Exército americano.
A experiência do Vietnã, onde
precisamente as imagens tiveram
um grande papel na rejeição da
guerra, foi aprendida. Restrições
ao livre trânsito de fotógrafos ou
mesmo sua integração às tropas,
como se fossem soldados, contribuíram para reduzir o potencial
de denúncia.
Na atual Guerra do Iraque, as
restrições norte-americanas são
multiplicadas pelos grupos armados que tratam a todos como invasores estrangeiros, seqüestrando e, às vezes, metralhando indiscriminadamente, jornalistas e
técnicos. Isso criou um jornalismo
de hotel, diz Robert Fisk, um gênero em que a matéria é feita sem
que as pessoas cheguem perto.
Trabalho possível para o repórter,
mas não o é para o fotógrafo.
Seymour M. Hersh poderia ter
escrito sua história sobre a prisão
de Abu Ghraib. Mas sem as fotos
tiradas pelos soldados a repercussão seria muito menor. Uma das
singularidades do nosso tempo.
Não produzimos mais o talento
de Goya para descrever os desastres da guerra. Mas temos à disposição formidáveis meios técnicos para produzir e transmitir
imagens. A visão de um simples
soldado, mediada por uma câmera com cerca de 1 milhão de megapixels, sacode o mundo de uma
forma que não era possível a Goya, em sua época.
Entre as cenas de guerra entre
espanhóis e franceses no Museu
do Prado e a morte de um soldado na guerra civil, fotografada
por Capa, vai, talvez, uma grande
distância estética. Mas o grito dos
artistas, com seus limites e circunstâncias, atravessa as épocas,
marco zero de nossa cultura da
paz.
São apenas anotações ao pé das
páginas de Robert Hughes. Não
creio que descartasse integralmente o argumento. Num certo
momento do livro, cita como
exemplo de imagem de guerra,
aquela célebre foto do chefe de polícia vietnamita fuzilando um
preso à queima-roupa.
O desafio dos senhores da guerra, desde a Guerra do Golfo, é não
somente impedir que os Capas
cheguem muito perto da cena
mas produzir um espetáculo de
luz e cor que nos seduza nos jornais noturnos da televisão. Algumas pequenas batalhas conseguem ganhar. Nesse sentido, Abu
Ghraib foi o seu Waterloo e um
triunfo póstumo de Francisco de
Goya y Lucientes. E por que não
de Pablo Picasso?
Texto Anterior: Festival cubano Próximo Texto: Panorâmica - Música: Morre Jim Capaldi, 60, ex-baterista do Traffic Índice
|