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A curiosa história do tênis tatuado
CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial
Antigamente, nove entre dez
tatuagens, na pele da humanidade que curtia esses desenhos
complicados, se resumiam
num coração gravado no braço, com a piedosa legenda:
"Amor de Mãe". Marinheiros,
fuzileiros navais (que o Mário
de Andrade tanto apreciava),
malandros da velha Lapa e do
cais do porto, era esse o tipo de
gente que curtia tatuagem. Estavam longe os dragões dos
meninos do Rio, as flores psicodélicas dos hippies e derivados.
Rosnavam as línguas bem-informadas que também havia
mulheres tatuadas, geralmente
naquelas partes que os nossos
avós chamavam de "países baixos". Ao contrário dos homens,
elas não expressavam o amor
materno nem seu equivalente
mais óbvio, o amor paterno.
Tatuavam símbolos.
Tennesse Williams deu bonito título a uma de suas peças,
"Rosa Tatuada". Mesmo assim, era uma minoria que
apreciava a coisa, e, no geral, a
tatuagem funcionava como
discreta manifestação de marginalidade.
Até que li, assombrado, por
ocasião do assassinato de uma
jovem atriz, coisa de três anos
atrás, que seu assassino mandara tatuar um nome de mulher naquele pedaço de sua
anatomia que tantos sinônimos tem, mas cujo nome palatável é parecido com tênis.
Lembro o revisor do "Correio
da Manhã" que foi demitido
porque deixou escapar, num
texto do cronista principal,
uma troca de letras que revelou-se fatídica para ele. A frase
era inocente e esportiva: "Sempre gostei de tênis grandes e escuros". O revisor deixou passar
a troca do "t" pelo "p". Como o
cronista era metido a ser original, avançadinho, muita gente
pensou que a frase era assim
mesmo: o sujeito gostava de pênis grandes e escuros.
Tanto a tatuagem como o erro do revisor me lembram uma
história que, embora real, em
sua versão exagerada se transforma em piada -como, aliás,
acontece com qualquer história da lenda ou da vida.
Deu-se que uma jovem estava
noiva de um nordestino meio
fora do esquadro, cuja fama e
manias não agradavam à mãe
da moça. Esgotado o arsenal de
restrições genéricas, a futura
sogra decidiu espionar o noivo
de sua filha, e tanto espionou
que, um dia, aproveitando-se
de o rapaz estar tomando banho, foi espiá-lo pelo buraco da
fechadura. (Uma sogra, um
noivo nordestino e um buraco
na fechadura teriam de dar
uma boa história, na pior das
hipóteses, numa piada sofrível.)
No que botou um olho no citado buraco, a futura sogra logo arregalou o outro: impossível! Não podia acreditar no que
estava vendo, embora estivesse
vendo pouquíssimo, apenas o
suficiente.
Foi diretamente comunicar à
filha: "Olha, você não pode casar com aquele tarado! Proíbo!". A moça também arregalou os olhos, os dois ao mesmo
tempo, sem saber e, na realidade, sem muito interesse em saber o que podia ter acontecido.
"Seu noivo não presta, minha
filha, é um nordestino que
nunca me enganou!" (A futura
sogra cultivava abrangente
prevenção contra nortistas,
nordestinos e até mesmo contra cariocas da zona norte da
cidade.)
A moça não estava a fim de se
esquentar, sabia que a mãe
procurava pretexto para melar
o casamento. Já insinuara que
o rapaz tinha outras namoradas, era vagabundo, gastava
tudo no bicho, passava os dias
jogando pelada. Tipo pouco recomendável para constituir família.
Mesmo assim, mais por delicadeza do que curiosidade, a
moça perguntou: "Mas o que
há de errado com ele? A senhora foi espiar pelo buraco da fechadura, ele estava tomando
banho, que mal há nisso?"
A futura sogra apalpou o coração, afrontada, já num começo de falta de ar. "O que há?
O que há? Pois o que há, minha
filha, é que jamais consentirei
nesse casamento! Seu noivo é
um tarado!"
"Tarado por quê?"
A futura sogra olhou para os
lados, não se sabe se à procura
de testemunhas ou, ao contrário, para evitar qualquer testemunha: "Vi o seu noivo nu. Ele
tem uma tatuagem sabe onde?
Justamente naquele lugar! Naquele lugar! E uma tatuagem
misteriosa, coisa de macumba,
de magia negra, minha filha.
Ele mandou tatuar um nome
horrível, só pode ser coisa de
feitiçaria: "Salbuco'. Como se
pode confiar num homem que
mandou gravar naquele lugar
esse nome, Salbuco?"
A moça riu, tranquilizada.
"Não, mamãe, a senhora leu
errado, não é Salbuco não, é
"Salve Meu Glorioso Estado
Natal de Pernambuco'."
A história não conta se a futura sogra caiu desmaiada, definitivamente sem ar. Tampouco esclarece se o casamento foi
desmanchado.
Ficamos sem saber se a moça
e o nordestino viveram muitos
anos felizes.
É possível que sim. Com uma
variante: é possível, também,
que a futura sogra tenha fugido
com o noivo de sua filha, na
justa curiosidade de ler a frase
completa. Depois de se espiar
pelo buraco de uma fechadura
-disse Rabelais-, tudo é possível.
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