São Paulo, sexta, 29 de janeiro de 1999

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A curiosa história do tênis tatuado

CARLOS HEITOR CONY

do Conselho Editorial

Antigamente, nove entre dez tatuagens, na pele da humanidade que curtia esses desenhos complicados, se resumiam num coração gravado no braço, com a piedosa legenda: "Amor de Mãe". Marinheiros, fuzileiros navais (que o Mário de Andrade tanto apreciava), malandros da velha Lapa e do cais do porto, era esse o tipo de gente que curtia tatuagem. Estavam longe os dragões dos meninos do Rio, as flores psicodélicas dos hippies e derivados.
Rosnavam as línguas bem-informadas que também havia mulheres tatuadas, geralmente naquelas partes que os nossos avós chamavam de "países baixos". Ao contrário dos homens, elas não expressavam o amor materno nem seu equivalente mais óbvio, o amor paterno. Tatuavam símbolos.
Tennesse Williams deu bonito título a uma de suas peças, "Rosa Tatuada". Mesmo assim, era uma minoria que apreciava a coisa, e, no geral, a tatuagem funcionava como discreta manifestação de marginalidade.
Até que li, assombrado, por ocasião do assassinato de uma jovem atriz, coisa de três anos atrás, que seu assassino mandara tatuar um nome de mulher naquele pedaço de sua anatomia que tantos sinônimos tem, mas cujo nome palatável é parecido com tênis.
Lembro o revisor do "Correio da Manhã" que foi demitido porque deixou escapar, num texto do cronista principal, uma troca de letras que revelou-se fatídica para ele. A frase era inocente e esportiva: "Sempre gostei de tênis grandes e escuros". O revisor deixou passar a troca do "t" pelo "p". Como o cronista era metido a ser original, avançadinho, muita gente pensou que a frase era assim mesmo: o sujeito gostava de pênis grandes e escuros.
Tanto a tatuagem como o erro do revisor me lembram uma história que, embora real, em sua versão exagerada se transforma em piada -como, aliás, acontece com qualquer história da lenda ou da vida.
Deu-se que uma jovem estava noiva de um nordestino meio fora do esquadro, cuja fama e manias não agradavam à mãe da moça. Esgotado o arsenal de restrições genéricas, a futura sogra decidiu espionar o noivo de sua filha, e tanto espionou que, um dia, aproveitando-se de o rapaz estar tomando banho, foi espiá-lo pelo buraco da fechadura. (Uma sogra, um noivo nordestino e um buraco na fechadura teriam de dar uma boa história, na pior das hipóteses, numa piada sofrível.)
No que botou um olho no citado buraco, a futura sogra logo arregalou o outro: impossível! Não podia acreditar no que estava vendo, embora estivesse vendo pouquíssimo, apenas o suficiente.
Foi diretamente comunicar à filha: "Olha, você não pode casar com aquele tarado! Proíbo!". A moça também arregalou os olhos, os dois ao mesmo tempo, sem saber e, na realidade, sem muito interesse em saber o que podia ter acontecido. "Seu noivo não presta, minha filha, é um nordestino que nunca me enganou!" (A futura sogra cultivava abrangente prevenção contra nortistas, nordestinos e até mesmo contra cariocas da zona norte da cidade.)
A moça não estava a fim de se esquentar, sabia que a mãe procurava pretexto para melar o casamento. Já insinuara que o rapaz tinha outras namoradas, era vagabundo, gastava tudo no bicho, passava os dias jogando pelada. Tipo pouco recomendável para constituir família.
Mesmo assim, mais por delicadeza do que curiosidade, a moça perguntou: "Mas o que há de errado com ele? A senhora foi espiar pelo buraco da fechadura, ele estava tomando banho, que mal há nisso?"
A futura sogra apalpou o coração, afrontada, já num começo de falta de ar. "O que há? O que há? Pois o que há, minha filha, é que jamais consentirei nesse casamento! Seu noivo é um tarado!"
"Tarado por quê?"
A futura sogra olhou para os lados, não se sabe se à procura de testemunhas ou, ao contrário, para evitar qualquer testemunha: "Vi o seu noivo nu. Ele tem uma tatuagem sabe onde? Justamente naquele lugar! Naquele lugar! E uma tatuagem misteriosa, coisa de macumba, de magia negra, minha filha. Ele mandou tatuar um nome horrível, só pode ser coisa de feitiçaria: "Salbuco'. Como se pode confiar num homem que mandou gravar naquele lugar esse nome, Salbuco?"
A moça riu, tranquilizada. "Não, mamãe, a senhora leu errado, não é Salbuco não, é "Salve Meu Glorioso Estado Natal de Pernambuco'."
A história não conta se a futura sogra caiu desmaiada, definitivamente sem ar. Tampouco esclarece se o casamento foi desmanchado.
Ficamos sem saber se a moça e o nordestino viveram muitos anos felizes.
É possível que sim. Com uma variante: é possível, também, que a futura sogra tenha fugido com o noivo de sua filha, na justa curiosidade de ler a frase completa. Depois de se espiar pelo buraco de uma fechadura -disse Rabelais-, tudo é possível.



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