São Paulo, sexta, 29 de janeiro de 1999

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GASTRONOMIA
Assessor nos mostra o caminho dos holofotes

da Redação

Logo que comecei a escrever em jornal me assustava muito o intermediário entre o jornalista e os acontecimentos. O senhor assessor. Quem eram aquelas pessoas tão articuladas que te contavam o que o mundo queria saber antes mesmo que o mundo soubesse o que queria saber?
Custei a perceber que os assessores eram nossas categorias kantianas, as grades pelas quais fluíam nossa lógica, passava nosso pensamento. Falando bem a verdade, achava o assessor um fardo, apetecia-me o assunto acidental, a falta de assunto, até. As notícias de comida, vejam só, são coisas simples, sardinhas em lata com bastante cebola por cima, um bom bife com batatas e pronto. Os "eventos", esses já têm data marcada e nenhum, por melhor que seja, vai abalar as estruturas do Ocidente.
Acontece que na vida real não é bem assim. Se o assessor não existisse, o mundo passaria ao largo, desapercebido do repórter. De verdade. É preciso alguém que ajude, que mostre o novo livro, o restaurante que vai abrir, o chef iluminado. Ele, o assessor é imprescindível. Cumpre sua obrigação. Assessora. Mostra. Sabe. Faz a hora, não espera acontecer. No mundo gastronômico, tudo, a festa, o jejum, o tempo, o lugar não são tramados por deuses nem pelo destino, pelo diabo ou pelo acaso. Quem inventou o universo de comidas com todas as suas estrelas e ingredientes foi o assessor. Podem crer. Uma guerra é uma guerra, uma guerra, mas o assunto gastronomia é quase sempre uma bolha fabricada. Sem problemas. E o repórter, sem assessor, corre o risco de ficar girando sobre os próprios calcanhares, cabeça levantada, tonto, matando pernilongos que não existem na realidade, matérias surgidas só no seu bestunto incendiado e sem rumo. Como é que ele pode saber que hoje é o cozinheiro Cacablanca, amanhã é o sorvete porque quando o verão chega é sorvete, a physalis foi ontem, o mangostão já era. E as crianças da tribo indígena que comem rabo de jacaré com tucupi há gerações não podem aparecer depois de sexta, o assunto já dançou.
Difícil resolver. Só sei que saem todos perdendo. Se o repórter não finca o pé e calhordamente se aproveita do pobre assessor, tira-lhe o peixe da boca, pega o que lhe interessa, orienta o assunto segundo sua própria perspectiva, estuda tudo de novo e deixa cair o resto como batata quente, estamos todos bem arrumados.
Perde o leitor que muitas vezes é obrigado a ler, em mais de um jornal, o que se convencionou que é o mais quente na vida gastronômica. Perde o jornalista em crescimento e criatividade. E, pior de tudo (pelo menos na gastronomia), perde o sujeito da matéria. É o caso dos cozinheiros, por exemplo. Aquele chef promissor, aquela baiana de cozinha intuitiva, que da noite para o dia são endeusados e se transformam em atores da mídia. Tiram fotos de "toque" sobre o fogão aceso com uma colher de pau na mão. Passam a manhã posando com uma galinha viva no colo ao modo do Daniel Boulud, que é chegado a fotos com patos vivos no sovaco.
Não há mais tempo para caldos, para o estudo, o trabalho, as descobertas. Vai a profissão para o beleléu e só resta uma cara oca na primeira página. Se o sucesso continua de mãos dadas com a exposição, as fotos, as entrevistas, podem saber, há por trás deles, dos restaurantes deles, um belíssimo cozinheiro anônimo.
É há coisas na vida que são difíceis de desatar. Nós, donos de restaurantes, festeiros, escritores de livros de comida, cozinheiros, maîtres, escondidos na selva escura, precisamos da luz dos holofotes para aparecer. O assessor gastronômico precisa de nós para viver. De mãos dadas lá vamos nós, esperando que o discernimento do repórter especializado (e quem mais senão ele?), seu cuidado com a própria credibilidade, seu respeito para com o leitor e seu jornal resolvam esse ponto chave.
Ai, felizes os cronistas culinários, cabeças frescas, pois falam do que bem querem, quando e porque querem. A crônica, gênero desassuntado por excelência, graças aos céus, não escandaliza ninguém quando versa sobre cupins na semana em que o mundo se curva, respeitoso, à moda do pato assado no sal grosso.
Benza Deus.
(NINA HORTA)
²

E-mail: ninahort@uol.com.br



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