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GASTRONOMIA
Assessor nos mostra o caminho dos holofotes
da Redação
Logo que comecei a escrever em
jornal me assustava muito o intermediário entre o jornalista e os
acontecimentos. O senhor assessor. Quem eram aquelas pessoas
tão articuladas que te contavam o
que o mundo queria saber antes
mesmo que o mundo soubesse o
que queria saber?
Custei a perceber que os assessores eram nossas categorias kantianas, as grades pelas quais fluíam
nossa lógica, passava nosso pensamento. Falando bem a verdade,
achava o assessor um fardo, apetecia-me o assunto acidental, a falta
de assunto, até. As notícias de comida, vejam só, são coisas simples,
sardinhas em lata com bastante cebola por cima, um bom bife com
batatas e pronto. Os "eventos", esses já têm data marcada e nenhum,
por melhor que seja, vai abalar as
estruturas do Ocidente.
Acontece que na vida real não é
bem assim. Se o assessor não existisse, o mundo passaria ao largo,
desapercebido do repórter. De verdade. É preciso alguém que ajude,
que mostre o novo livro, o restaurante que vai abrir, o chef iluminado. Ele, o assessor é imprescindível. Cumpre sua obrigação. Assessora. Mostra. Sabe. Faz a hora, não
espera acontecer. No mundo gastronômico, tudo, a festa, o jejum, o
tempo, o lugar não são tramados
por deuses nem pelo destino, pelo
diabo ou pelo acaso. Quem inventou o universo de comidas com todas as suas estrelas e ingredientes
foi o assessor. Podem crer. Uma
guerra é uma guerra, uma guerra,
mas o assunto gastronomia é quase sempre uma bolha fabricada.
Sem problemas. E o repórter, sem
assessor, corre o risco de ficar girando sobre os próprios calcanhares, cabeça levantada, tonto, matando pernilongos que não existem na realidade, matérias surgidas só no seu bestunto incendiado
e sem rumo. Como é que ele pode
saber que hoje é o cozinheiro Cacablanca, amanhã é o sorvete porque
quando o verão chega é sorvete, a
physalis foi ontem, o mangostão já
era. E as crianças da tribo indígena
que comem rabo de jacaré com tucupi há gerações não podem aparecer depois de sexta, o assunto já
dançou.
Difícil resolver. Só sei que saem
todos perdendo. Se o repórter não
finca o pé e calhordamente se
aproveita do pobre assessor, tira-lhe o peixe da boca, pega o que lhe
interessa, orienta o assunto segundo sua própria perspectiva, estuda
tudo de novo e deixa cair o resto
como batata quente, estamos todos bem arrumados.
Perde o leitor que muitas vezes é
obrigado a ler, em mais de um jornal, o que se convencionou que é o
mais quente na vida gastronômica.
Perde o jornalista em crescimento
e criatividade. E, pior de tudo (pelo
menos na gastronomia), perde o
sujeito da matéria. É o caso dos cozinheiros, por exemplo. Aquele
chef promissor, aquela baiana de
cozinha intuitiva, que da noite para o dia são endeusados e se transformam em atores da mídia. Tiram
fotos de "toque" sobre o fogão aceso com uma colher de pau na mão.
Passam a manhã posando com
uma galinha viva no colo ao modo
do Daniel Boulud, que é chegado a
fotos com patos vivos no sovaco.
Não há mais tempo para caldos,
para o estudo, o trabalho, as descobertas. Vai a profissão para o beleléu e só resta uma cara oca na primeira página. Se o sucesso continua de mãos dadas com a exposição, as fotos, as entrevistas, podem
saber, há por trás deles, dos restaurantes deles, um belíssimo cozinheiro anônimo.
É há coisas na vida que são difíceis de desatar. Nós, donos de restaurantes, festeiros, escritores de
livros de comida, cozinheiros,
maîtres, escondidos na selva escura, precisamos da luz dos holofotes
para aparecer. O assessor gastronômico precisa de nós para viver.
De mãos dadas lá vamos nós, esperando que o discernimento do repórter especializado (e quem mais
senão ele?), seu cuidado com a
própria credibilidade, seu respeito
para com o leitor e seu jornal resolvam esse ponto chave.
Ai, felizes os cronistas culinários,
cabeças frescas, pois falam do que
bem querem, quando e porque
querem. A crônica, gênero desassuntado por excelência, graças aos
céus, não escandaliza ninguém
quando versa sobre cupins na semana em que o mundo se curva,
respeitoso, à moda do pato assado
no sal grosso.
Benza Deus.
(NINA HORTA)
²
E-mail: ninahort@uol.com.br
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