São Paulo, terça-feira, 29 de fevereiro de 2000


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JAZZ
Roberts honra a memória de Duke Ellington

da Equipe de Articulistas


A última faixa é um bom lugar para começar. Notas destacadas, frases elásticas, harmonia incomum mas natural, um novo velho blues no piano, que vai pouco a pouco incorporando bateria e contrabaixo até as exaltações retumbantes do fim ou quase. Resta uma nota grave, solta, no seu próprio tempo, até perder o tempo.
Marcus Roberts é um dos mais aventurosos, imaginativos, virtuosísticos, originais e engajados instrumentistas de jazz da atualidade. Cinco adjetivos não é demais: seu novo CD, "em honra de Duke Ellington", deixaria o Duke honrado, embora surpreso também.
O começo é outro bom lugar para começar. A bateria de Jason Marsalis (irmão de Wynton e Branford) entra sozinha, pela porta do lado, com obliqüidades de métrica. O contrabaixo (Roland Guerin) responde, com melodias de borracha e seda. Baixo e bateria confundem timbres e acentos. O piano só chega depois do diálogo avançado, com harmonias bem cortadas e pedaços sugestivos de frase. Dali em diante, os três meditam breques, tocando juntos como raramente se toca.
É uma experiência inusitada ver o retrato de Duke Ellington (1899-1974) gradualmente se formando por trás dessas paisagens. Imagine um grande músico de jazz: sóbrio, elegante, modesto, econômico, tranqüilo, sedutor. Imagine outro: narcisista, bizarro, ambicioso, gastador, exuberante, autocentrado. Que o segundo possa traduzir o primeiro, em seus próprios termos, que o espírito bem conhecido de um passe pela música estranha do outro é algo de verdadeiramente novo, nesse domínio de tanta novidade sem novidade.
Uma novidade especial é a presença do percussionista e baterista Antonio Sanchez. Em "Take a Chance", de modo particular, Sanchez e Marsalis reinventam a idéia da bateria como instrumento melódico, não só rítmico. Se Jack De Johnette é, até hoje, o Mozart dos bateristas, Sanchez e Marsalis começam a ensinar outras lições, do lado de cá do século. Para tocar bateria assim, é preciso, antes, não tocar bateria: não tocar mais como se toca, deixar para trás uma relativa incomunicabilidade, meio bruta, de quem só escuta pulso. A bateria canta e pensa no mesmo plano das idéias e melodias de um piano ou contrabaixo.
Abstrações de ritmo e invenções livres de metro se casam bem com o talento de Marcus Roberts para abstrair fundo e forma do homenageado. Assim como recria, no idioma descentrado de outra geração, os descentramentos de John Coltrane e Thelonious Monk, outros homenageados, mesmo se em caráter menos explícito.
Em "Groove Until You Move", ele está à vontade o bastante para reinventar a música cubana. A faixa-título, "In Honor of Duke", cria espaço para uma batucada brasileira. "The Beauty of the Spirit" vem de melodias de igreja. Qualquer gênero se molda aos propósitos de Roberts, e qualquer espectro pode projetar sua sombra sobre o preto-e-branco cheio de cores desse teclado.
Quer dizer, qualquer espectro não. Roberts escolhe, com a consciência, ou presciência, de um músico tão forte assim, os precursores que vai deixar falar. Nenhum poderia ser mais apropriado do que o grande duque, até pela incompatibilidade aparente. As aparências não enganam; mas o incompatível é mais um elemento a favor da música inovadora e exigente de Roberts. (AN)


Avaliação:     

Disco: In Honor of Duke Banda: Marcus Roberts Trio Gravadora: Columbia Quanto: R$ 45,90 (na Fnac)

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