São Paulo, quarta-feira, 29 de março de 2000


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MARCELO COELHO
Neutralidade é qualidade em "Hans Staden"

Noto uma certa prevenção contra o filme de Luiz Alberto Pereira, "Hans Staden", em cartaz no Espaço Unibanco. Fui ver o filme porque as críticas, em geral, tinham um tom desfavorável.
Do meu ponto de vista, filmes ruins inspiram mais artigos do que filmes bons. É mais interessante perceber erros e contradições do que extasiar-se diante de uma obra-prima.
Minha dupla expectativa -a de ver um filme ruim e a de escrever um artigo interessante- foi contrariada. "Hans Staden" não é, nem de longe, um filme ruim. Tento escrever um artigo apesar disso.
A história do filme é conhecida: um aventureiro alemão, a serviço dos portugueses, é aprisionado por índios amigos dos franceses. Os índios ameaçam devorar o rapaz. Ele sobrevive, não sem antes presenciar um ritual de canibalismo.
Como sobrevive? No filme, vemos que alguns lances de sorte o beneficiam; que o tempo ritual, exigido antes que se dê a devoração, corre a favor da vítima; e que mesmo milagres acontecem.
Pouco importa. "Hans Staden" é um filme que joga, que oscila entre a verossimilhança e a implausibilidade. Nada mais real, nada mais perfeito, do que o retrato que faz dos costumes indígenas. Nada mais estranho do que o fato de Hans Staden sair são e salvo da aventura.
Tudo se mostra resultado do acaso. Eis a maior virtude, e o maior defeito, do filme.
É claro que todo espectador, ou pelo menos todo crítico de cinema, espera de "Hans Staden" alguma densidade simbólica. Num momento em que se comemoram os 500 anos do Descobrimento do Brasil, seria inevitável ver no caso de Hans Staden uma metáfora, uma alegoria do encontro entre índios e brancos; uma "releitura", como se diz, da antropofagia oswaldiana.
O problema é que "Hans Staden" nada oferece nesse nível de interpretação. Não é alegórico. Não indica as intenções do autor. O filme é neutro. Conta o que aconteceu, nada mais.
Desconfio que seja esta a razão de seu malogro junto à crítica. "Hans Staden" limita-se ao relato factual. Em nenhum momento percebemos as "intenções" do diretor. O crítico de cinema fica atônito diante de obra tão dura, tão objetiva, tão parca em significados e intenções de autor.
Mesmo o desempenho de Carlos Evelyn, no papel-título, foi mal interpretado. Ele não sugere nenhuma indicação ao Oscar, exatamente porque seu papel, como protagonista do filme, não é o de um herói. Nem mesmo o de uma vítima. Ele é antes um objeto ritual.
Condenado ao ritual antropofágico, Hans Staden se vê destituído de subjetividade. Não é o homem branco enfrentando a barbárie nem o bárbaro ocidental punido pela autenticidade vitimada dos índios. O filme é neutro; Carlos Evelyn é um mero objeto de sua situação, à qual reage de forma imitativa. É tão estranho quanto um índio.
Essa, no fundo, é a originalidade de "Hans Staden". Os atores falam em tupinambá, em francês, em alemão... Há legendas o tempo todo. Os índios não são bons nem maus: são simplesmente estranhos. Riem e choram na hora errada.
O que "Hans Staden" projeta, na sua cuidadosa antropologia, em sua excelente produção, é uma frieza que tem tudo para afastar o espectador das salas de cinema. Narra um episódio, simplesmente. O episódio está tão distante das habituais "interpretações do Brasil", furta-se tanto à miragem do "significado", que é natural a rejeição de críticos e espectadores à obra filmada.
Ao contrário, fico pensando no seguinte. O auê em torno dos 500 anos do Descobrimento tem sido um pretexto para indagarmos sobre a questão de nossas origens, dos padrões de continuidade que se estabeleceram a partir da herança colonial.
O grande mérito de "Hans Staden" é o de se esquivar de qualquer reconhecimento, de negar qualquer padrão de continuidade entre o que ocorria em 1560 e o que acontece agora. É um filme sem metáforas. Nesse sentido, é progressista e realista.
Não incorre no vício elegíaco e autoflagelante de uma "essência brasílica" deturpada pela civilização européia. Não tem heróis. Hans Staden é tão índio quanto os índios. Os índios são mais estranhos do que supomos, os europeus também.
O que o filme faz é marcar a distância, enorme, entre 1560 e 2000. Essa distância dói no espectador, no crítico, predisposto a ilações de continuidade e a raciocínios antropologizantes.
Não, "Hans Staden" se recusa a qualquer intuito de identificação. Mesmo porque a questão da identidade nacional se dissolve na trama do filme: Hans Staden nega ser português, passa por ser súdito do rei de França, no fundo é alemão, no fundo é tupi.
É como se "Hans Staden" recusasse todos os raciocínios celebratórios em torno do Brasil. Diz apenas: "Foi desse jeito".
Seu objetivismo conduz à falta de empatia. O filme é interessante, mas não emociona. Recusa-se a todo raciocínio fácil em torno da questão "o que é o Brasil". Talvez isso seja um sinal de maturidade.
Estamos tão entupidos, neste ano 2000, de interpretações, de visões retrospectivas, de culpabilizações históricas, de raciocínios a respeito do Brasil, que é sinal positivo dessa overdose a existência de um filme neutro, distante, frio, como "Hans Staden". Libera-nos de nosso passado. Nada pior do que cultuá-lo: mesmo o espírito crítico assume ares de exaltação nestes dias de exaltação. O filme aposta mais em Kafka do que em Oswald de Andrade. Já é um progresso.


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