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MARCELO COELHO
Neutralidade é qualidade em "Hans Staden"
Noto uma certa prevenção contra o filme de Luiz Alberto Pereira, "Hans Staden", em cartaz no
Espaço Unibanco. Fui ver o filme
porque as críticas, em geral, tinham um tom desfavorável.
Do meu ponto de vista, filmes
ruins inspiram mais artigos do
que filmes bons. É mais interessante perceber erros e contradições do que extasiar-se diante de
uma obra-prima.
Minha dupla expectativa -a
de ver um filme ruim e a de escrever um artigo interessante- foi
contrariada. "Hans Staden" não
é, nem de longe, um filme ruim.
Tento escrever um artigo apesar
disso.
A história do filme é conhecida:
um aventureiro alemão, a serviço
dos portugueses, é aprisionado
por índios amigos dos franceses.
Os índios ameaçam devorar o rapaz. Ele sobrevive, não sem antes
presenciar um ritual de canibalismo.
Como sobrevive? No filme, vemos que alguns lances de sorte o
beneficiam; que o tempo ritual,
exigido antes que se dê a devoração, corre a favor da vítima; e que
mesmo milagres acontecem.
Pouco importa. "Hans Staden"
é um filme que joga, que oscila entre a verossimilhança e a implausibilidade. Nada mais real, nada
mais perfeito, do que o retrato que
faz dos costumes indígenas. Nada
mais estranho do que o fato de
Hans Staden sair são e salvo da
aventura.
Tudo se mostra resultado do
acaso. Eis a maior virtude, e o
maior defeito, do filme.
É claro que todo espectador, ou
pelo menos todo crítico de cinema, espera de "Hans Staden" alguma densidade simbólica. Num
momento em que se comemoram
os 500 anos do Descobrimento do
Brasil, seria inevitável ver no caso
de Hans Staden uma metáfora,
uma alegoria do encontro entre
índios e brancos; uma "releitura",
como se diz, da antropofagia oswaldiana.
O problema é que "Hans Staden" nada oferece nesse nível de
interpretação. Não é alegórico.
Não indica as intenções do autor.
O filme é neutro. Conta o que
aconteceu, nada mais.
Desconfio que seja esta a razão
de seu malogro junto à crítica.
"Hans Staden" limita-se ao relato
factual. Em nenhum momento
percebemos as "intenções" do diretor. O crítico de cinema fica atônito diante de obra tão dura, tão
objetiva, tão parca em significados e intenções de autor.
Mesmo o desempenho de Carlos
Evelyn, no papel-título, foi mal interpretado. Ele não sugere nenhuma indicação ao Oscar, exatamente porque seu papel, como
protagonista do filme, não é o de
um herói. Nem mesmo o de uma
vítima. Ele é antes um objeto ritual.
Condenado ao ritual antropofágico, Hans Staden se vê destituído
de subjetividade. Não é o homem
branco enfrentando a barbárie
nem o bárbaro ocidental punido
pela autenticidade vitimada dos
índios. O filme é neutro; Carlos
Evelyn é um mero objeto de sua
situação, à qual reage de forma
imitativa. É tão estranho quanto
um índio.
Essa, no fundo, é a originalidade de "Hans Staden". Os atores falam em tupinambá, em francês,
em alemão... Há legendas o tempo
todo. Os índios não são bons nem
maus: são simplesmente estranhos. Riem e choram na hora errada.
O que "Hans Staden" projeta,
na sua cuidadosa antropologia,
em sua excelente produção, é uma
frieza que tem tudo para afastar o
espectador das salas de cinema.
Narra um episódio, simplesmente. O episódio está tão distante
das habituais "interpretações do
Brasil", furta-se tanto à miragem
do "significado", que é natural a
rejeição de críticos e espectadores
à obra filmada.
Ao contrário, fico pensando no
seguinte. O auê em torno dos 500
anos do Descobrimento tem sido
um pretexto para indagarmos sobre a questão de nossas origens,
dos padrões de continuidade que
se estabeleceram a partir da herança colonial.
O grande mérito de "Hans Staden" é o de se esquivar de qualquer reconhecimento, de negar
qualquer padrão de continuidade
entre o que ocorria em 1560 e o
que acontece agora. É um filme
sem metáforas. Nesse sentido, é
progressista e realista.
Não incorre no vício elegíaco e
autoflagelante de uma "essência
brasílica" deturpada pela civilização européia. Não tem heróis.
Hans Staden é tão índio quanto
os índios. Os índios são mais estranhos do que supomos, os europeus também.
O que o filme faz é marcar a distância, enorme, entre 1560 e 2000.
Essa distância dói no espectador,
no crítico, predisposto a ilações de
continuidade e a raciocínios antropologizantes.
Não, "Hans Staden" se recusa a
qualquer intuito de identificação.
Mesmo porque a questão da identidade nacional se dissolve na trama do filme: Hans Staden nega
ser português, passa por ser súdito
do rei de França, no fundo é alemão, no fundo é tupi.
É como se "Hans Staden" recusasse todos os raciocínios celebratórios em torno do Brasil. Diz
apenas: "Foi desse jeito".
Seu objetivismo conduz à falta
de empatia. O filme é interessante, mas não emociona. Recusa-se
a todo raciocínio fácil em torno
da questão "o que é o Brasil". Talvez isso seja um sinal de maturidade.
Estamos tão entupidos, neste
ano 2000, de interpretações, de visões retrospectivas, de culpabilizações históricas, de raciocínios a
respeito do Brasil, que é sinal positivo dessa overdose a existência
de um filme neutro, distante, frio,
como "Hans Staden". Libera-nos
de nosso passado. Nada pior do
que cultuá-lo: mesmo o espírito
crítico assume ares de exaltação
nestes dias de exaltação. O filme
aposta mais em Kafka do que em
Oswald de Andrade. Já é um progresso.
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