São Paulo, segunda-feira, 29 de março de 2004

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ÓPERA/CRÍTICA

As novas descobertas de "Colombo"

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Há várias ironias involuntárias na ópera "Colombo " de Carlos Gomes (1836-1896); e outras tantas, voluntárias, na montagem que estreou sexta-feira no Municipal, regida por Roberto Duarte e dirigida por William Pereira. A maior de todas é uma grande virtude: faz de uma obra menor, cheia de ambições frustradas, a ocasião para um espetáculo arrojado e apurado, que reinventa a música sob o domínio do teatro.
Além de voluntárias e involuntárias, existem as ironias explícitas. A começar pelo começo, antes ainda do primeiro acorde, com os cantores-atores escolhendo figurinos nas araras e o barítono Sebastião Teixeira no papel não de Cristóvão Colombo, mas de Sebastião Teixeira mesmo, carregando um holofote e procurando um foco, até acertar na imagem em alto relevo do próprio Carlos Gomes, no teto.
Dali para a frente, William Pereira tinha assegurado seu direito de escrever roteiros alternativos, em contraponto com o não-roteiro original de Albino Falanca. Visualmente, o resultado é discreta e extravagantemente expressivo. Transfere os ideais gastos da epopéia descobrimentista ("Colombo" foi escrita para comemorar os 400 anos da descoberta da América) para um outro mundo, onde se cruzam lembranças de gênios da cena como o cineasta Peter Greenaway com artes mais convencionais da ópera e reescrituras politicamente afinadas .
Véus e telões servem de filtro e suporte para imagens de cinema (ondas do mar em câmera lenta) e projeções de textos, mapas, partituras. A involuntária atualização do grito do Rei da Espanha -"Guerra ao Islã!"- segue-se à projeção sugestiva de fogos, fazendo pensar na Inquisição: a barbárie vem de todos os lados. E a dedicatória, "To the American People" (o "poema vocal-sinfônico" foi composto com vistas a uma exposição em Chicago), ganha outro acento, depois que um texto rola no fundo, narrando a derrocada de Colombo, que defendeu indígenas de maus-tratos e caiu em desgraça com a realeza. Etc. etc.: são dezenas e dezenas de detalhes assim.
Sebastião Teixeira faz um Colombo forte e seguro, mas relativamente neutro, o que só pode ser bom nesse contexto. Não há propriamente um personagem, com mudanças e crises; tanto melhor que não se force a mão do drama. Vale o mesmo para os ótimos Rei (Marcello Vanucci) e Rainha (Monica Marangon Martins) e para o Frade (Sávio Sperandi). "Colombo" não é lugar par a exercitar loucuras e carismas; de resto, a imaginação visual -incluindo os figurinos- já cumpre compensatoriamente essa função.
Que Carlos Gomes tenha escrito uma de suas obras mais ousadas tematizando a descoberta de um Novo Mundo, mas dando as costas para o novo mundo da música, é uma história conhecida. Não haveria por que fantasiar a partitura de modernidades, e o maestro Roberto Duarte conduziu as coisas com vigor natural.
O espetacular hino foi espetacularmente cantado pelo Coral Lírico, que também fez bem o papel de marinheiros-de-ópera (limpinhos, educados) e cortesãos (catolicamente elegantes, em branco-e-preto). Balé escolar, mas até isso funciona no meio da alegoria.
Só é pena que tanto esforço se consuma em três apresentações. Quem sabe o Municipal não começa a pensar em DVDs?


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