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RODAPÉ LITERÁRIO
Música de câmara
A poesia de Malufe é arisca, rente ao banal -há manchas na parede, o hall do elevador, o desencontro dos casais
FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA
"NESTA CIDADE e Abaixo de
Teus Olhos", segundo livro de Annita Costa Malufe, paulistana que também publicou a coletânea "Fundos para Dias
de Chuva" (7Letras, 2004), assume,
desde o título, os riscos e as promessas de uma sintaxe esgarçada (veja-se a intrigante quebra de paralelismo entre os termos que situam o sujeito, a cidade e as coordenadas de
um olhar, aliás, de difícil atribuição)
e de uma escrita tateante, aludida na
forma do ensaio.
De poesia arisca, rente ao corriqueiro (as manchas na parede, o hall
do elevador, os diálogos encruados,
o desencontro dos casais, o silêncio e
o ruído-ambiente), o eixo do livro
está no encadeamento de instantâneos do movimento, apreensão dramatizada do tempo próprio em que
percepções do mundo se verbalizam, ganham nome, passam a vigorar como voz de uma consciência reflexiva.
Não uma reflexão sobre o
grande mundo, mas a voltada para o
vizinho e o efêmero.
Em sua armação fragmentária,
"Nesta Cidade e Abaixo de Teus
Olhos" tem o aspecto de partitura
verbal, esboço de poema longo, segundo padrões modernos, em fuga
constante do apelo do narrativo:
"que história eu vou contar?/ (logo
eu/ que sempre fui péssima de enredos)". O flerte com um olhar abaixo
da linha do horizonte, colado ao próximo e com a paciência da minúcia,
produz um ritmo associativo aparentado ao da prosa poética.
Mas, se algo aqui se narra, é uma
urgência de múltiplas formalizações
do eu ("corro de uma angústia que
me morde pela manhã/ preciso falar
e tantas vezes acordo muda/ percorrendo o mundo como quem buscasse uma sombra"), aderindo a escólios mínimos de vivências urbanas,
muitas e pouco espalhafatosas, anotadas a partir de observações esparsas, de falas inconclusas ("me levantar de manhã e novamente/ retornar/ ter uma casa duas casas duas
horas para voltar").
E, ainda assim, figurações da intimidade (Marcos Siscar falou em
"andamento de diário", a propósito
de seu livro anterior, e Ana Cristina
Cesar é evocada na orelha assinada
por Heitor Ferraz) teimam em
emergir desta recusa à receita tradicional da lírica.
A ambição por trás da poesia de
Annita Malufe -alcançar, a partir
da referência escassa e de um jogo livre de linguagem, uma tradução
concreta e sensível de um "self"
sempre renovado e caleidoscópico,
avesso da poesia confessional-
comporta um risco: o de que este vazio de identidades fixas, criado a
custo pela forma simplificada, pela
recusa de ritmos graves e dos labirintos metafóricos ("não há metáforas, veja bem"), acabe ocupado pelos
significados cristalizados que procurava expulsar.
O paradoxo só confirma que, em
poesia, reinventar os hábitos é tão
difícil quanto necessário.
NESTA CIDADE E ABAIXO DE TEUS OLHOS
Autora: Annita Costa Malufe
Editora: 7Letras
Quanto: R$ 20 (66 págs.)
Avaliação: bom
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