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Crítica/"Café Titanic"
Conflitos dentro da Europa são base de contos de sérvio
Nobel de Literatura, Ándritch ganha coletânea de textos lançada pela Globo
NELSON ASCHER
COLUNISTA DA FOLHA
Quando o cientista político Robert Kagan disse que os americanos
eram de Marte e os europeus de
Vênus, ele estava ironizando
não somente o sonho de uma
paz perpétua na qual o Velho
Mundo ingressara recentemente como também a desmemória que o tornara plausível.
Afinal, se os habitantes do
continente gostam hoje de se
flagelar ostensivamente por
seu passado colonialista no
Terceiro Mundo, isso não deixa
de ser uma forma de confessar
um crime menor para obter a
absolvição de outros maiores,
aqueles cometidos pelos europeus contra os demais europeus. Basta recordar o que
aconteceu menos de 20 anos
atrás com a Iugoslávia.
É em uma de suas regiões, a
Bósnia, não desta última guerra, mas de várias outras, que se
desenrolam os contos de Ivo
Ándritch reunidos em "Café Titanic". Traduzidos do sérvio
por Aleksandar Jovanovic, estes revelam a mesma familiaridade desencantada com a natureza humana, a mesma atenção
para o detalhe significativo e,
sobretudo, a mesma capacidade de encarar a história sem
lentes róseas que, plenamente
desenvolvidas na sua obra-prima, o romance "A Ponte sobre
o Drina", renderam-lhe o Nobel de Literatura em 1961.
A Bósnia foi, séculos a fio, o
Oeste selvagem do Império
Otomano que a subjugara. São
em regiões assim que os efeitos
deletérios dos impérios, especialmente os decadentes, aparecem mais cedo: o desgoverno
e a corrupção administrativa,
os conflitos étnicos e a crueldade. A Bósnia ademais, durante
o domínio turco, ilustrava melhor do que a maioria das regiões como era a vida onde conviviam, meio que a contragosto,
três culturas -a muçulmana, a
cristã (nas vertentes católica e
ortodoxa) e a judaica.
Ándritch dedica vários contos a esse período da história e a
impressão que dá é a de que, se
o convívio de diferentes religiões sob a hegemonia do islã
na Península Ibérica foi paradisíaco assim como as lendas politicamente corretas querem
nos fazer crer, tratava-se de
uma exceção que não se repetiu
nos Bálcãs. Nestes, todos sabiam seu lugar e ai de quem o
esquecesse por um momento.
Seu multiculturalismo era antes uma imposição hierarquizada, e o que assegurava a paz
interétnica era o monopólio da
violência que o poder central
exercitava sem restrições.
A ocupação otomana foi, então, substituída pela austríaca,
mas nem por isso a tranqüilidade se tornou a regra, de modo
que as tensões locais acabaram
se convertendo num dos estopins da Primeira Guerra. Se,
depois desta, a criação de uma
primeira federação iugoslava
prometia certa estabilidade, a
direção dos eventos continuou
longe das mãos da população e,
durante a Segunda Guerra, na
qual se ambienta o conto que dá
título ao livro, os conquistadores alemães e seus aliados, os
"ustashas" croatas, promoveram um banho de sangue ali,
massacrando sérvios e judeus.
À primeira vista, o autor, em
sua ficção, parece referir-se a
um lugar e tempos remotos,
que mal nos dizem respeito.
Quem, no entanto, aprofundar-se na sua leitura, verificará
quão pertinente estas narrativas são, pois, nelas, por meio
das roupagens típicas ou de
época, Ándritch identifica e
isola com sucesso constantes
humanas ou históricas que,
além de continuarem válidas,
tampouco deixarão de vigorar
tão cedo.
CAFÉ TITANIC
Autor: Ivo Ándritch
Tradução: Aleksandar Jovanovic
Editora: Globo
Quanto: R$ 26 (280 págs.)
Avaliação: ótimo
leia trecho do livro
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