São Paulo, sábado, 29 de março de 2008

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Crítica/"Café Titanic"

Conflitos dentro da Europa são base de contos de sérvio

Nobel de Literatura, Ándritch ganha coletânea de textos lançada pela Globo

NELSON ASCHER
COLUNISTA DA FOLHA

Quando o cientista político Robert Kagan disse que os americanos eram de Marte e os europeus de Vênus, ele estava ironizando não somente o sonho de uma paz perpétua na qual o Velho Mundo ingressara recentemente como também a desmemória que o tornara plausível.
Afinal, se os habitantes do continente gostam hoje de se flagelar ostensivamente por seu passado colonialista no Terceiro Mundo, isso não deixa de ser uma forma de confessar um crime menor para obter a absolvição de outros maiores, aqueles cometidos pelos europeus contra os demais europeus. Basta recordar o que aconteceu menos de 20 anos atrás com a Iugoslávia.
É em uma de suas regiões, a Bósnia, não desta última guerra, mas de várias outras, que se desenrolam os contos de Ivo Ándritch reunidos em "Café Titanic". Traduzidos do sérvio por Aleksandar Jovanovic, estes revelam a mesma familiaridade desencantada com a natureza humana, a mesma atenção para o detalhe significativo e, sobretudo, a mesma capacidade de encarar a história sem lentes róseas que, plenamente desenvolvidas na sua obra-prima, o romance "A Ponte sobre o Drina", renderam-lhe o Nobel de Literatura em 1961.
A Bósnia foi, séculos a fio, o Oeste selvagem do Império Otomano que a subjugara. São em regiões assim que os efeitos deletérios dos impérios, especialmente os decadentes, aparecem mais cedo: o desgoverno e a corrupção administrativa, os conflitos étnicos e a crueldade. A Bósnia ademais, durante o domínio turco, ilustrava melhor do que a maioria das regiões como era a vida onde conviviam, meio que a contragosto, três culturas -a muçulmana, a cristã (nas vertentes católica e ortodoxa) e a judaica.
Ándritch dedica vários contos a esse período da história e a impressão que dá é a de que, se o convívio de diferentes religiões sob a hegemonia do islã na Península Ibérica foi paradisíaco assim como as lendas politicamente corretas querem nos fazer crer, tratava-se de uma exceção que não se repetiu nos Bálcãs. Nestes, todos sabiam seu lugar e ai de quem o esquecesse por um momento.
Seu multiculturalismo era antes uma imposição hierarquizada, e o que assegurava a paz interétnica era o monopólio da violência que o poder central exercitava sem restrições.
A ocupação otomana foi, então, substituída pela austríaca, mas nem por isso a tranqüilidade se tornou a regra, de modo que as tensões locais acabaram se convertendo num dos estopins da Primeira Guerra. Se, depois desta, a criação de uma primeira federação iugoslava prometia certa estabilidade, a direção dos eventos continuou longe das mãos da população e, durante a Segunda Guerra, na qual se ambienta o conto que dá título ao livro, os conquistadores alemães e seus aliados, os "ustashas" croatas, promoveram um banho de sangue ali, massacrando sérvios e judeus.
À primeira vista, o autor, em sua ficção, parece referir-se a um lugar e tempos remotos, que mal nos dizem respeito.
Quem, no entanto, aprofundar-se na sua leitura, verificará quão pertinente estas narrativas são, pois, nelas, por meio das roupagens típicas ou de época, Ándritch identifica e isola com sucesso constantes humanas ou históricas que, além de continuarem válidas, tampouco deixarão de vigorar tão cedo.


CAFÉ TITANIC
Autor:
Ivo Ándritch
Tradução: Aleksandar Jovanovic
Editora: Globo
Quanto: R$ 26 (280 págs.)
Avaliação: ótimo
leia trecho do livro



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