|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CRÍTICA
Incontinências do visual
da enviada a Campo Grande
Do seu "Livro Sobre Nada", Manoel de Barros disse, em 1996: "O
nada de meu livro é nada mesmo,
um alarme para o silêncio". Dez
anos antes, no "Livro de Pré-Coisas", ele já tinha registrado o silêncio em "Narrador Apresenta
sua Terra Natal": "Ia o Silêncio
pela rua carregando um bêbado".
Hoje, neste "Ensaios Fotográficos", é esse Silêncio personagem,
com letra maiúscula, que o poeta
volta a flagrar, agora com máquina de fotógrafo, no poema "O Fotógrafo": "Ia o Silêncio pela rua
carregando um bêbado/Preparei
minha máquina/O silêncio era
um carregador/estava carregando
o bêbado. Fotografei esse carregador".
Fotografar o imaterial, "o que
não tem corpo" -o silêncio, o
perfume do jasmim, o perdão no
olho de um mendigo-, as visões,
é essa a tarefa do poeta ocupado
em dar forma a uma "imagem literária que trabalha no mistério
da matéria" (Gaston Bachelard citado por Mônica Costa em estudo
sobre a poesia de Barros), "que
quer mais sugerir do que descrever, a imagem literária que nos dá
a experiência de uma criação de
linguagem".
Se no seu "Livro de Pré-Coisas"
"há o encontro do poeta com as
coisas", neste "Ensaios Fotográficos", o encontro se dá entre a poesia e o reino da imagem -entre a
linguagem da pintura (ou da fotografia) e as vozes do silêncio, na
relação estabelecida por Maurice
Merleau-Ponty.
Por uma espécie de processo de
filtragem ou desconstrução da
palavra (quando se chega à "despalavra") e de desconstrução da
visão, quando se vê o mundo do
ponto de vista de uma borboleta
(como no poema "Borboletas"), a
poesia de Manoel de Barros quer
aqui inaugurar uma linguagem
composta de imagens totais, sem
moderação nenhuma, verdadeiras "incontinências do visual",
metáforas puras.
A epígrafe do livro é de Jorge
Luis Borges e diz: "Imagens não
passam de incontinências do visual". Ali, no "reino da despalavra", acontece a filtragem fotográfica: "As palavras se sujam de nós
na viagem/Mas desembarcam no
poema escorreitas: como que filtradas/E livres das tripas do nosso
espírito" (do poema "Comparamento").
O reino das imagens é sinônimo
do lugar onde pode ocorrer a
grande metamorfose, onde se flagra a coisa no momento de si
mesma, onde tudo é capaz de se
transfigurar em tudo, porque o
poeta "aumenta o mundo com
suas metáforas".
Inaugurar linguagens, dar concretude de imagem (de coisa) ao
incorpóreo, preencher com isso
as faltas todas que se sente neste
mundo - porque "tem mais presença em mim o que me falta"- ,
reside nisto o gênio da poesia de
Manoel de Barros, que se orgulha,
com todo direito, de cantar em
verso o erro e a "ignorãça" poética: "A única língua que estudei
com força foi a portuguesa/Estudei-a com força para poder errá-la ao dente".
(MF)
Avaliação:
Texto Anterior: Marilene Felinto: A imagem como voz da poesia Próximo Texto: Mônica Bergamo Índice
|