São Paulo, sábado, 29 de abril de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CRÍTICA

Incontinências do visual

da enviada a Campo Grande

Do seu "Livro Sobre Nada", Manoel de Barros disse, em 1996: "O nada de meu livro é nada mesmo, um alarme para o silêncio". Dez anos antes, no "Livro de Pré-Coisas", ele já tinha registrado o silêncio em "Narrador Apresenta sua Terra Natal": "Ia o Silêncio pela rua carregando um bêbado".
Hoje, neste "Ensaios Fotográficos", é esse Silêncio personagem, com letra maiúscula, que o poeta volta a flagrar, agora com máquina de fotógrafo, no poema "O Fotógrafo": "Ia o Silêncio pela rua carregando um bêbado/Preparei minha máquina/O silêncio era um carregador/estava carregando o bêbado. Fotografei esse carregador".
Fotografar o imaterial, "o que não tem corpo" -o silêncio, o perfume do jasmim, o perdão no olho de um mendigo-, as visões, é essa a tarefa do poeta ocupado em dar forma a uma "imagem literária que trabalha no mistério da matéria" (Gaston Bachelard citado por Mônica Costa em estudo sobre a poesia de Barros), "que quer mais sugerir do que descrever, a imagem literária que nos dá a experiência de uma criação de linguagem".
Se no seu "Livro de Pré-Coisas" "há o encontro do poeta com as coisas", neste "Ensaios Fotográficos", o encontro se dá entre a poesia e o reino da imagem -entre a linguagem da pintura (ou da fotografia) e as vozes do silêncio, na relação estabelecida por Maurice Merleau-Ponty.
Por uma espécie de processo de filtragem ou desconstrução da palavra (quando se chega à "despalavra") e de desconstrução da visão, quando se vê o mundo do ponto de vista de uma borboleta (como no poema "Borboletas"), a poesia de Manoel de Barros quer aqui inaugurar uma linguagem composta de imagens totais, sem moderação nenhuma, verdadeiras "incontinências do visual", metáforas puras.
A epígrafe do livro é de Jorge Luis Borges e diz: "Imagens não passam de incontinências do visual". Ali, no "reino da despalavra", acontece a filtragem fotográfica: "As palavras se sujam de nós na viagem/Mas desembarcam no poema escorreitas: como que filtradas/E livres das tripas do nosso espírito" (do poema "Comparamento").
O reino das imagens é sinônimo do lugar onde pode ocorrer a grande metamorfose, onde se flagra a coisa no momento de si mesma, onde tudo é capaz de se transfigurar em tudo, porque o poeta "aumenta o mundo com suas metáforas".
Inaugurar linguagens, dar concretude de imagem (de coisa) ao incorpóreo, preencher com isso as faltas todas que se sente neste mundo - porque "tem mais presença em mim o que me falta"- , reside nisto o gênio da poesia de Manoel de Barros, que se orgulha, com todo direito, de cantar em verso o erro e a "ignorãça" poética: "A única língua que estudei com força foi a portuguesa/Estudei-a com força para poder errá-la ao dente". (MF)


Avaliação:    


Texto Anterior: Marilene Felinto: A imagem como voz da poesia
Próximo Texto: Mônica Bergamo
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.