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São Paulo, terça-feira, 29 de abril de 2003

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"NELSON FREIRE"

Maior pianista brasileiro se fecha em documentário

Filme é simpático, reticente, frustrante

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

Boa parte do público de concertos, diz o autor deste documentário, "gosta de ver o seu pianista dando golpes de braço à direita e à esquerda, como se o teclado fosse um mar, e ele, um afogado. Com Nelson Freire isso nunca acontece".
Para João Moreira Salles, "é como se Freire dissesse: "Prestem atenção na música e não se deixem ludibriar pela performance". E suspeito também que se trate de uma questão de recato".
Com efeito, recato é o que não falta neste documentário sobre o maior pianista brasileiro. Nelson Freire toca muito e fala pouquíssimo. O público de música clássica certamente não tem do que se queixar: há peças que são executadas na íntegra, e mesmo duas vezes em seguida (a "Melodia" da ópera "Orfeu e Eurídice" de Gluck, uma vez numa gravação de Guiomar Novaes, logo em seguida por Nelson Freire).
Há trechos generosos do "Concerto nš 2" de Rachmaninov, da "Fantasia op. 17" de Schumann, do "Concerto nš 2" de Brahms, além de ótimas cenas de Nelson Freire em duo com sua amiga Martha Argerich, explorando peças menos conhecidas do repertório ("Bailecito", de Carlos Guastavino).
Mesmo os admiradores de Nelson Freire podem se sentir frustrados, entretanto, com as reticências do pianista e, por extensão, do próprio documentário. Não que fosse o caso de cobrar muitos detalhes biográficos (embora a leitura das cartas que Nelson Freire recebeu de seu pai e de sua professora, ainda no começo da carreira, constituam o ponto alto do filme).
O problema é que, mesmo quando poderia falar a respeito de algum compositor, de algum trecho musical, ou talvez de algum pianista que o tivesse influenciado, o sempre simpático Nelson Freire se fecha. Pára as frases no meio do caminho, acena vagamente para algum lugar, sorri, encabula-se, embatuca: é como se a música, para ele, tivesse tal eloquência que todo comentário fosse supérfluo.
Está certo -mas o filme tampouco registra opiniões de críticos, estudiosos, personalidades do mundo musical sobre Nelson Freire. Nem demonstra um trabalho mais extenso de pesquisa. Do ponto de vista informativo e jornalístico, tudo fica assim muito frustrante.
Em alguns minutos, contudo, temos um pequeno exemplo do que o documentário poderia ser, se houvesse mais empenho nesse aspecto. É quando o pianista está às voltas com uma difícil passagem em oitavas do concerto de Brahms.
Primeiro, ele aparece estudando exaustivamente o trecho, com o metrônomo. Todo aquele árduo trabalho se torna imperceptível num passe de mágica quando em seguida o trecho é executado, em pianíssimo, num recital ao vivo. Nelson Freire não precisou falar, explicar, comentar nada -mas o documentário, nesse momento, esclarece para o espectador um pouco da arte do pianista.
Foi só um breve momento. O jogo entre o privado e o público, entre timidez e exibição, que aquela cena exemplificava tão bem -e com tanto acréscimo de prazer e compreensão para quem gosta de música clássica-, cede lugar a cenas de puro embaraço e de constrangedora domesticidade. As de Nelson Freire conversando com sua cachorra Danuza, agradecendo os fãs depois do concerto ou assistindo a um vídeo de Rita Hayworth e Fred Astaire são de um vazio de dar dó.
O carinho que o público dedica ao pianista (no Brasil, ele é sempre chamado de "Nelson", a exemplo do que acontecia com "Guiomar") certamente desculpará as insuficiências deste documentário. As obras que ele toca, e sua imensa arte como intérprete, mereceriam muito mais.


Nelson Freire  
Produção: Brasil, 2003
Direção: João Moreira Salles
Quando: a partir de 2 de maio



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