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CARLOS HEITOR CONY
Jornalismo e literatura
É necessário apelar para
Aristóteles: a definição se faz
pelo gênero próximo e pela diferença última. Exemplo: o homem
é um animal racional. O gênero
próximo é o animal; a diferença
última é o racional. Aplicando a
mesma definição ao jornalismo e
à literatura, teríamos de encontrar a diferença última entre as
duas expressões da comunicação
humana.
O gênero próximo é o mesmo: o
universo das letras. A diferença
última é o tempo. Daí que a palavra crônica é segmento comum
da literatura e do jornalismo. O
jornalismo condiciona o espaço
da letra ao tempo do tempo. O
jornalismo distingue-se da literatura por ser uma expressão datada.
Não se trata de considerar o jornalismo como expressão inferior
à literatura. São expressões diferentes, unidas pelo mesmo gênero. Utilizam o mesmo veículo,
pretendem atingir o mesmo objetivo, mas em tempo próprio para
cada um. Dois exemplos da diversidade de tempo que marca tanto
o jornalismo como a literatura: o
primeiro seria o de Castro Alves,
essencialmente um poeta, e José
do Patrocínio, essencialmente um
jornalista. Ambos integram a cultura brasileira, ligados sobretudo
à causa da abolição da escravatura. Patrocínio era o tigre, enchia a
rua do Ouvidor, foi levado em
triunfo, no ombro do povo, logo
após a princesa Isabel ter assinado a Lei Áurea. O herói foi ele,
não a princesa.
Castro Alves nunca teve triunfo
igual, mas continua presente em
nosso presente e estará presente
em nosso futuro. "O Navio Negreiro" atravessa gerações, é declamado nas escolas, nos teatros,
na TV, emplacou na história. Patrocínio jornalista não foi menor,
foi até maior do que Castro Alves
no factual, no tempo, na data.
Mas no tempo? Na permanência?
O gênero próximo que unia os
dois eram as palavras que despertavam emoções e apelos à razão,
mas a diferença última foi o tempo -um escreveu para o dia; o
outro, para sempre.
O outro exemplo vem de fora,
foi provocado pelo caso Dreyfus.
Na França, havia a consciência
de que um inocente apodrecia
numa caverna da ilha do Diabo.
O verdadeiro culpado já confessara o crime de espionagem, mas estava a salvo na Inglaterra. O poder da época não permitia a revisão do processo, o Exército francês
ficaria desmoralizado e era necessário prestigiá-lo, pois havia sempre o perigo de uma guerra contra
a Alemanha.
Foi nesse quadro de infâmia
que um escritor se levantou em
defesa da dignidade, a própria e a
da nação. Emile Zola era desprezado por sua obra naturalista,
acusado de imoral. Sangue italiano, arrebatado, Zola escreveu um
artigo, teve dificuldade em publicá-lo. Após tentativas frustradas,
procurou o "L'Aurore", dirigido
então por George Clemenceau,
que mais tarde seria primeiro-ministro da França. Clemenceau
aceitou o artigo de Zola, mas chamou-o à Redação e comunicou-lhe que mudaria o título de seu
texto. Zola quis saber o que havia
de errado naquela "Carta a M.Felix Faure, Presidente da República".
Clemenceau explicou:
- Ninguém lerá um texto comprido como o seu e com esse título.
Você mesmo faz uma série de
acusações; no trecho final, todos
os seus parágrafos começam com
um "Eu acuso". O título está aí.
Eu acuso! "J'accuse!".
Entraram os três para a história, Zola, Clemenceau e o artigo.
Analisemos o episódio. O escritor já era famoso, bem mais do
que Clemenceau, que, na época,
era apenas um jornalista voltado
para a política. As obras de Zola
corriam o mundo, ele fizera discípulos em todas as literaturas (Eça
de Queiroz foi um deles), tornara-se o papa de uma nova corrente
literária, mas não sabia provocar
impacto. Foi, como disse Victor
Hugo no seu funeral, "um momento da consciência humana",
mas lhe faltava o "timing" que se
adquire nas redações comprometidas com o que está acontecendo.
Zola não escrevia para o dia seguinte, escrevia para sempre.
Tanto que seus romances continuam editados, traduzidos,
adaptados para o teatro, para o
cinema, para a TV.
Costumo fazer uma comparação entre jornalismo e literatura.
O jornalista é um peixe de aquário, exibe seu desenho, suas cores,
a fosforescência que atrai o leitor.
Impossível não admirar um peixe
na gaiola iluminada, com água
renovada diariamente. É um
clown. Precisa de brilho, expressa-se num palco.
O escritor é diferente. Ele terá
apenas cem leitores, como Stendhal calculava para si mesmo.
Ou, como Shakespeare, passará
200 anos no limbo. O jornalista
não pode passar duas edições sem
ser lido.
E, se o jornalista é o peixinho de
aquário, o escritor é o peixe da
água profunda, vive na treva, em
águas aonde nem chega a luz do
sol. É monstruoso, escuro, quasímodo que habita um território
impenetrável. Não conhece os limites do palco. Tem o oceano para arrastar seu corpo medonho,
sua fome que não escolhe o que
comer. (PS: este é o resumo de
uma palestra em seminário sobre
jornalismo e literatura.)
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