São Paulo, sábado, 29 de abril de 2006

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ANÁLISE/POLÍTICA

Distanciamento de movimentos populares e golpismo, entre outros temas, são debatidos em "Leituras da Crise"

PT resiste a críticas com forças intelectuais que restam

Beto Barata - 26.ago.1999/Associated Press
Lula, na época presidente de honra do PT, discursa para participantes da "Marcha dos 100 Mil", na Esplanada dos Ministérios


MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

Petistas, não-petistas e ex-petistas têm muito a aproveitar de "Leituras da Crise - Diálogos sobre o PT, a Democracia Brasileira e o Socialismo".
O volume reúne quatro longas entrevistas concedidas pela filósofa Marilena Chaui, pelo cientista político Wanderley Guilherme dos Santos, pelo teólogo Leonardo Boff e pelo dirigente do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) João Pedro Stedile a Juarez Guimarães, militante petista e professor da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).
Figuras, como se sabe, insuspeitas de simpatias pelo PSDB. Críticas ao PT e ao governo Lula, entretanto, não faltam em suas reflexões. Os movimentos sociais e populares passaram a ter lugar subalterno na vida do PT, diz Marilena Chaui. O balanço do governo Lula na questão da agricultura camponesa foi negativo, avalia João Pedro Stedile. Faltou coragem pessoal ao presidente Lula, diz Leonardo Boff, pedindo "gestos proféticos que dariam um novo perfil a seu governo e sustentariam a esperança hoje abalada".

"Delirante"
Wanderley Guilherme dos Santos é o entrevistado que menos parece se incomodar com a crise do PT. "A idéia de que o PT, uma vez chegado ao poder, teria instaurado, inaugurado, a prática de corrupção sistêmica no país" seria, a seu ver, "obviamente delirante".
O problema é outro: "Quando a oposição enquadra um fenômeno real de corrupção nesta verborragia, com isso está comprometido qualquer exame eficaz da matéria da corrupção". Nessa entrevista, conduzida com inteligência por Juarez Guimarães, Wanderley Guilherme tem oportunidade de esclarecer melhor sua tese sobre o "golpismo" por trás das denúncias do mensalão. Contestaram-na, argumentando que, se o governo Lula tem uma política econômica conservadora, a direita não teria interesse em desestabilizá-lo.
Ele explica: nunca disse que "aqueles que estavam promovendo a idéia de um impedimento do governo Lula estavam a serviço de forças econômicas ou sociais". Foi apenas uma luta partidária pelo poder, um movimento estritamente político -tanto assim que não contou com aprovação pública de ninguém.
Seria o caso de dizer que, como a famosa Batalha de Itararé, o golpismo de Wanderley Guilherme foi o golpismo que não houve. Exaltações e contra-exaltações retóricas à parte, sua argumentação se esgarça bastante quando ele diferencia o "Fora, FHC" dos petistas (uma coisa "totalmente fora do esquadro") do comportamento atual do PSDB e do PFL, "que se juntam no Parlamento para acusar o presidente de atos ilícitos sem nenhuma evidência concreta". Neste caso, trata-se de "partidos com expressão séria na sociedade que não podem se permitir esse tipo de política de baixo nível". Mas será que para Wanderley Guilherme o PT, quando promovia o "Fora, FHC", não tinha "expressão séria na sociedade"?
Tudo se adensa intelectualmente na entrevista de Marilena Chaui, que refuta, à direita e à esquerda, as teses de um "totalitarismo petista" e de um "neoliberalismo" do governo Lula. Vêm da filósofa as críticas mais fortes à direção do PT: "Mescla de oportunismo, irresponsabilidade, delinqüência e burrice".
Estaríamos falando só de Delúbio Soares ou também de José Genoino e José Dirceu? A pergunta não foi feita, mas caberia, uma vez que, para Marilena Chaui, o problema da burocratização do partido é que "os funcionários (ainda que petistas) são pagos para cumprir ordens, e não para discuti-las ou desobedecê-las".
Uma operação conceitual interessante torna essa questão supérflua para Marilena Chaui. A filósofa distingue a ética "na" política e a ética "da" política. Esperar uma ética "na" política seria cair na ideologia, erradamente interiorizada pelo PT, de que tudo depende de indivíduos mais ou menos honestos ocuparem o poder. O que importa é o aperfeiçoamento de instituições capazes de ampliar e consolidar a cidadania política e os direitos sociais.
Resta saber qual seria o papel de instituições assim aperfeiçoadas quando estourasse um escândalo de corrupção. Não estaria em jogo, em cada caso específico, a honestidade ou desonestidade individual dos ocupantes do poder? Não era isso o que estava em jogo quando se acusava o governo FHC de irregularidades e quando se falava na ética como um dos "patrimônios" do PT, até então mais ou menos virgem de denúncias comprometedoras?
Outro procedimento questionável perpassa todo o livro. Trata-se, em geral, de notar erros, desvios, decisões e processos criticáveis dentro do PT, ao mesmo tempo em que se desqualificam as denúncias de que o partido e o governo foram objeto. Os "fatos" existem; revelá-los, entretanto, é parte de uma orquestração da mídia e de grupos poderosos.

Virtudes e impeachment
A crise, para Marilena Chaui, iniciou-se ou pelas virtudes do próprio governo ("desencadeamento de ações da Polícia Federal, que iriam atingir gente graúda"; "a perda de 15 bilhões de dólares do grupo Opportunity, dirigido por Daniel Dantas, homem-forte do caixa do PSDB, com as mudanças que seriam feitas nos fundos de pensão") ou pela vontade nada virtuosa de desencadear um impeachment contra Lula.
Assim, diz Chaui citando o filósofo Sérgio Cardoso, unificam-se, no discurso da crise, três discursos preexistentes que se encontravam separados: "o discurso moral, isto é, de denúncia de corrupção, dirigido à classe média; o discurso economicista, ou seja, a política do governo como traição, dirigida à esquerda; e o discurso pseudopolítico, sintetizado na afirmação de que era preciso devolver o poder à "gente séria e respeitável que entende de política'".
Fora esse terceiro caso, entretanto, o "discurso moral" e o "discurso economicista" não teriam razão para ser rotulados com esse sutil espírito de superioridade analítica. Sempre fizeram parte do "discurso petista". Que outros agentes agora os utilizem não é suficiente para que tenham perdido exatidão e pertinência.
Não apenas tucanos e pefelistas são acusados de incorrer nesses "discursos". Todo setor de esquerda descontente com o PT é sutilmente desqualificado: há os que agem por consciência culpada, "que se sente ferida e traída quando o PT não se comporta com a radicalidade desejável"; há os "melancólicos", que se consideram traídos e dizem que o PT acabou.
Nada disso: trata-se de imagens fragmentadas, abstratas, ideológicas, porque apresentam e explicam "imediatamente uma experiência como um dado, sem as mediações do processo que constitui essa experiência".
Tudo se passa como se quaisquer críticas ao PT fossem válidas, desde que feitas pelos próprios petistas. Fora do PT, o que há é ideologia, golpismo, visão parcial da realidade, o que quisermos. A argumentação não foge da tradição totalitária.
Mais do que um convite a "tolerar", como concede um João Pedro Stedile, as opiniões divergentes, seria o caso de dizer que a democracia, a oposição, a liberdade de imprensa poderiam agir como freios a um processo de "desvios" dentro do PT, advertindo-o dos males que Chauí está pronta a reconhecer. Mas a este elogio da democracia, e à necessidade de "refundar-se" de fato, o partido resiste com todas as forças intelectuais que lhe restam.
Leituras da Crise - Diálogos sobre o PT, a Democracia

Brasileira e o Socialismo
Autores:
Marilena Chaui, Leonardo Boff, João Pedro Stedile e Wanderley Guilherme dos Santos, entrevistados por Juarez Guimarães
Editora: Fundação Perseu Abramo
Quanto: R$ 20 (256 págs.)


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