São Paulo, sábado, 29 de abril de 2006

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RODAPÉ

Raduan Nassar: as vísceras da lavoura

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA

"Os olhos no teto, a nudez dentro do quarto; róseo, azul ou violáceo, o quarto é inviolável, é um mundo, quarto catedral, onde, nos intervalos da angústia, se colhe, de um áspero caule, na palma da mão, a rosa branca do desespero, pois entre os objetos que o quarto consagra estão primeiro os objetos do corpo."
Desde as palavras da abertura, esta estréia definitiva, seguida de um voto de silêncio, fez de Raduan Nassar, paulista de Pindorama, um mito: o autor recluso, senhor de uma prosa lírica, impura e visceral, criador em "Lavoura Arcaica" de um marco inarredável da narrativa brasileira moderna.
Em seus 30 anos, além de ganhar edição comemorativa, o romance de Nassar é justamente celebrado no ensaio "Ritos da Paixão em "Lavoura Arcaica'", de André Luis Rodrigues, que se sai bem da empreitada, alternando-se entre os papéis de leitor rendido e intérprete cuidadoso.
Difícil isolar de onde vem a força do romance aniversariante, se da combinação bem tramada de motivos míticos cruciais -a queda edênica, o tabu do incesto, a volta do filho pródigo, o tempo cíclico do cultivo da terra e a renovação propiciada pelos sacrifícios- com a percepção das fraturas que a experiência histórica neles introduz, se da dicção solene e poderosa do autor, imantada por um ritmo encantatório primordial, profundamente inscrito no desenho sonoro e acentual dos períodos, compostos sob turbilhão retórico acelerado e respiração ofegante e profética. Sem abandonar a busca teórica pelos critérios e pelo equilíbrio, André Rodrigues soube fazer-se câmara de eco para os excessos da escrita de Nassar, traço constitutivo e segredo de sua eficácia, ordenando-os através das marcas que deixam na lavoura dos corpos, da escrita e do campo.
Contra os que leram em "Lavoura Arcaica" apenas uma alegoria imediata da cegueira do poder autocrático, decifrável contra o pano de fundo dos anos de chumbo e do impasse político brasileiro dos anos 70, sem perder, contudo, a dimensão específica desta família -moderno testemunho dos valores mediterrâneos do clã, sangüíneos e vitalistas, transplantados nos trópicos-, o autor empreende sua análise a partir da queda de braço, arquetípica, entre o poder do pai e a insubmissão do filho.
Neste conflito, contrapõe-se um enrijecimento do discurso da tradição, tentativa de estancar o tempo e proibir as mudanças (encarnado na argumentação cerrada, elegante e ideológica do pai) e uma explosão de rebeldia jovem da ovelha que busca se desgarrar.
Dois capítulos -"O Lavrar dos Campos: A Família, Segundo o Pai" e "O Lavrar dos Corpos: A Família Segundo André"- servem ao autor para configurar as posições antagônicas entre o representante de uma ordem em cujo centro está um discurso monolítico, inflamado elogio da ascese, do trabalho e da propriedade (posse e mediocridade decorosa), e aquele que, nostálgico de um paraíso perdido, enxerga nessa lei paterna mesquinho princípio de realidade a ser combatido em nome do desejo e da utopia. Não deixa de ser um dos achados do livro a maneira como esse enfrentamento é apanhado, flagrando nas filigranas da escrita, através de uma leitura cerrada, a contaminação recíproca dos pólos opostos, limitando ideologicamente os termos em que André expressa sua revolta, inserindo-a nos limites do tempo e demonstrando os transbordamentos eventuais do pai, nos sermões e nas festas.
Atento à escrita que alterna os tempos da rememoração e da ação, sondagem de culpas e motivos, o ensaísta ocupa-se, então, de evidenciar as conseqüências trágicas que esse enfrentamento emblemático assume quando posto em movimento pelo romance. No gesto transgressivo e secreto de André (a posse física da vida desenfreada, Eros, na pessoa da irmã), sua fuga inexplicada e retorno forçado, levando à morte e à dissolução da família, Rodrigues mostra o quanto a fórmula circular repetida pelo pai -"a terra, o trigo, o pão, a mesa, a família (a terra)"- já era fanática e desmesurada, fadada à corrosão interna, em seu fetiche da união refratária às novidades do mundo, fechando a arquitetura do livro, bela contribuição à fortuna crítica do autor.


Fábio de Souza Andrade escreve quinzenalmente nesta coluna

Ritos da Paixão em "Lavoura Arcaica"
   
Autor: André Luis Rodrigues
Editora: Edusp
Quanto: R$ 35 (184 págs.)


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