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RODAPÉ
Raduan Nassar: as vísceras da lavoura
FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA
"Os olhos no teto, a nudez
dentro do quarto; róseo,
azul ou violáceo, o quarto é inviolável, é um mundo, quarto catedral, onde, nos intervalos da angústia, se colhe, de um áspero caule, na palma da mão, a rosa branca
do desespero, pois entre os objetos
que o quarto consagra estão primeiro os objetos do corpo."
Desde as palavras da abertura,
esta estréia definitiva, seguida de
um voto de silêncio, fez de Raduan
Nassar, paulista de Pindorama,
um mito: o autor recluso, senhor
de uma prosa lírica, impura e visceral, criador em "Lavoura Arcaica" de um marco inarredável da
narrativa brasileira moderna.
Em seus 30 anos, além de ganhar
edição comemorativa, o romance
de Nassar é justamente celebrado
no ensaio "Ritos da Paixão em "Lavoura Arcaica'", de André Luis
Rodrigues, que se sai bem da empreitada, alternando-se entre os
papéis de leitor rendido e intérprete cuidadoso.
Difícil isolar de onde vem a força
do romance aniversariante, se da
combinação bem tramada de motivos míticos cruciais -a queda
edênica, o tabu do incesto, a volta
do filho pródigo, o tempo cíclico
do cultivo da terra e a renovação
propiciada pelos sacrifícios-
com a percepção das fraturas que
a experiência histórica neles introduz, se da dicção solene e poderosa do autor, imantada por um ritmo encantatório primordial, profundamente inscrito no desenho
sonoro e acentual dos períodos,
compostos sob turbilhão retórico
acelerado e respiração ofegante e
profética. Sem abandonar a busca
teórica pelos critérios e pelo equilíbrio, André Rodrigues soube fazer-se câmara de eco para os excessos da escrita de Nassar, traço
constitutivo e segredo de sua eficácia, ordenando-os através das
marcas que deixam na lavoura dos
corpos, da escrita e do campo.
Contra os que leram em "Lavoura Arcaica" apenas uma alegoria
imediata da cegueira do poder autocrático, decifrável contra o pano
de fundo dos anos de chumbo e do
impasse político brasileiro dos
anos 70, sem perder, contudo, a
dimensão específica desta família
-moderno testemunho dos valores mediterrâneos do clã, sangüíneos e vitalistas, transplantados
nos trópicos-, o autor empreende sua análise a partir da queda de
braço, arquetípica, entre o poder
do pai e a insubmissão do filho.
Neste conflito, contrapõe-se um
enrijecimento do discurso da tradição, tentativa de estancar o tempo e proibir as mudanças (encarnado na argumentação cerrada,
elegante e ideológica do pai) e uma
explosão de rebeldia jovem da
ovelha que busca se desgarrar.
Dois capítulos -"O Lavrar dos
Campos: A Família, Segundo o
Pai" e "O Lavrar dos Corpos: A Família Segundo André"- servem
ao autor para configurar as posições antagônicas entre o representante de uma ordem em cujo centro está um discurso monolítico,
inflamado elogio da ascese, do trabalho e da propriedade (posse e
mediocridade decorosa), e aquele
que, nostálgico de um paraíso perdido, enxerga nessa lei paterna
mesquinho princípio de realidade
a ser combatido em nome do desejo e da utopia. Não deixa de ser
um dos achados do livro a maneira como esse enfrentamento é
apanhado, flagrando nas filigranas da escrita, através de uma leitura cerrada, a contaminação recíproca dos pólos opostos, limitando ideologicamente os termos em
que André expressa sua revolta,
inserindo-a nos limites do tempo e
demonstrando os transbordamentos eventuais do pai, nos sermões e nas festas.
Atento à escrita que alterna os
tempos da rememoração e da
ação, sondagem de culpas e motivos, o ensaísta ocupa-se, então, de
evidenciar as conseqüências trágicas que esse enfrentamento emblemático assume quando posto
em movimento pelo romance. No
gesto transgressivo e secreto de
André (a posse física da vida desenfreada, Eros, na pessoa da irmã), sua fuga inexplicada e retorno forçado, levando à morte e à
dissolução da família, Rodrigues
mostra o quanto a fórmula circular repetida pelo pai -"a terra, o
trigo, o pão, a mesa, a família (a
terra)"- já era fanática e desmesurada, fadada à corrosão interna,
em seu fetiche da união refratária
às novidades do mundo, fechando
a arquitetura do livro, bela contribuição à fortuna crítica do autor.
Fábio de Souza Andrade escreve quinzenalmente nesta coluna
Ritos da Paixão em "Lavoura Arcaica"
Autor: André Luis Rodrigues
Editora: Edusp
Quanto: R$ 35 (184 págs.)
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