São Paulo, quarta-feira, 29 de abril de 2009

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MARCELO COELHO

Serrote e violino


A cultura não deveria equivaler a um bem de luxo; serve para cortar, ferir, fazer ruído também


ASSIM COMEÇA a ficar difícil. Sou um feliz assinante da revista "Piauí" e nunca me arrependo quando abro um de seus números para ler. O problema é que raras vezes faço isso, e a pilha das revistas em cima da mesa aumenta mês a mês.
Agora aparece outra revista de alta qualidade, "Serrote", editada pelo Instituto Moreira Salles. Bem mais grossa que "Piauí" (220 páginas), tem ao menos a "vantagem" (consolo-me) de ser quadrimestral.
Seu primeiro número traz coisa que não acaba mais. Uma coleção de aforismos de Kafka. Um ensaio de Nuno Ramos sobre Nelson Cavaquinho. Uma carta inédita de Mário de Andrade. Ilustrações inéditas de Saul Steinberg.
Em homenagem aos 200 anos de Darwin, "Serrote" apresenta a tradução de dois textos do jornalista H. L. Mencken a respeito do conhecido caso do professor John Scopes, submetido a julgamento no Tennessee por ensinar a teoria da evolução numa escola pública, em 1925.
A crise econômica mundial não foi esquecida. Serve de "gancho", como se diz no jargão jornalístico, para a tradução de dois textos excelentes: um sobre o velho Ford Bigode (escrito por E. B. White em 1936) e outro sobre Detroit, escrito por Edmund Wilson e publicado originalmente em 1932.
Ao lado de um importante artigo de Robert Darnton sobre o risco de um monopólio do Google na digitalização de livros, o comentarista esportivo Tostão reflete sobre a técnica do passe no futebol. "Vão ser chiques assim lá no quinto dos infernos", resmunga o meu velho caipirismo.
Refreio, contudo, meus sentimentos menos nobres e trato de analisar melhor o espírito de "Serrote". A capa desse primeiro número pode trazer, acho, algumas indicações importantes quanto ao projeto da revista.
Em branco e preto, apresenta um dos desenhos inéditos de Saul Steinberg reproduzidos no miolo da revista. Feito praticamente com uma única linha contínua de tinta sobre o papel, como se fosse um arame ao mesmo tempo cursivo e anguloso, o desenho retrata um violinista de perfil, concentradíssimo, vagamente humorístico na sua indiferença com respeito ao público.
Eis um músico erudito, retratado com sofisticação, mas num meio "popular", o do cartum. A linha do desenho é simultaneamente melodiosa e "dura", como a meio caminho entre a tinta escorregadia e um corte de estilete.
Em cima, à direita, vem o título da revista: "Serrote" (sem maiúscula, aliás). Sabemos que um serrote pode se transformar em instrumento musical, havendo quem possa tocá-lo com um arco de violino ou violoncelo. E, sem dúvida, pode acontecer de um violino trair seus hábitos maviosos e produzir todo tipo de guincho e dissonância.
Seria esse, quem sabe, o programa para uma boa revista de ensaios: a cultura mais exigente não deveria equivaler a um bem de luxo, de uso exclusivamente ornamental; serve para cortar, ferir, fazer ruído também.
Mas o fato é que a proximidade da cultura com uma mentalidade de luxo, prestígio e patrocínio se manifesta com muita intensidade no Brasil de hoje. E não temos, com exceção dos movimentos culturais da periferia urbana, alguma coisa capaz de servir como orientação estética e política para uma revista cultural.
Os surrealistas, os comunistas, os modernistas podiam criar seus "órgãos oficiais" de ensaio, crítica e poesia; hoje, não é tão simples adquirir identidade própria. Sem dúvida, "Serrote" se equilibra com cuidado nesse primeiro número, temperando com temas brasileiros e populares (samba, futebol) a presença de tantos nomes do jornalismo literário americano. Seu poder de intervenção no cenário cultural brasileiro haverá, espero, de crescer nos próximos números.
Mas talvez, como no caso de "Piauí", a intervenção de "Serrote" (seu papel, digamos, nos "combates culturais" de hoje) já esteja bastante clara, e eu é que estou pedindo demais. Trata-se, nos dois casos, não propriamente de novos acontecimentos na "cultura brasileira", mas de apostas no campo mais restrito do jornalismo brasileiro.
O impulso das duas revistas, na verdade, é o de valorizar a reportagem, o perfil, o ensaio longo, factual e elaborado, numa reação ao noticiário picotado do cotidiano. Coisas, enfim, que levem o cidadão a se sentar numa poltrona e ler, por uma ou duas horas. Só isso, sei por mim mesmo, já é um desafio e tanto.

coelhofsp@uol.com.br


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