São Paulo, quinta-feira, 29 de abril de 2010

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Crítica/"Êxodos - O Eclipse da Terra"

Espetáculo traz atuações vibrantes

Peça do grupo Folias discute a imigração com caleidoscópio de alegorias e tem encenador maduro à frente da trupe

Lenise Pinheiro/Folha Imagem
Os atores Danilo Grangheia (à frente), que interpreta Esaú e Jacó na peça, e Ieltxu Martinez Ortueta, que conduz a narrativa

LUIZ FERNANDO RAMOS
CRÍTICO DA FOLHA

O teatro como um sonho capaz de despertar os mortos. É essa quimera sombria que anima "Êxodos - O Eclipse da Terra", o belo novo espetáculo do grupo Folias.
Fiel ao programa de uma cena que mobilize as consciências, mas possuída de uma loucura própria aos estados oníricos, a encenação de Marco Antônio Rodrigues projeta o colapso do humano mirando os deslocamentos clandestinos pelos territórios do planeta.
Os pontos de partida foram o livro de fotos de Sebastião Salgado, que capta legiões de seres deslocados em exílios irreversíveis, e a literatura de Gabriel García Márquez, com suas histórias ensandecidas de humanidade. Essas referências, num traço de diálogo com a produção cênica contemporânea, passaram por um exaustivo processo de escritura impulsionado pelos sete atores e sob a coordenação do dramaturgo português Jorge Louraço, que traz ares novos ao coletivo.
Ele não é o único estrangeiro no trabalho. A narrativa é conduzida pelo ator basco Ieltxu Martinez Ortueta, "anjo Gabriel" que recebe o público e o provoca a recordar sonhos recentes. Seu próprio sonho é um pesadelo, em que está morto e rodeado de amigos. Esta evocação desencadeia um caleidoscópio de cenas alucinadas, mas sempre claras em seu delineamento fabular, como convêm à tradição do teatro épico.
Sob a máxima de que a poesia é a única prova da existência, as falas dos personagens soam metafóricas. Eles são mais alegorias que agentes dramáticos.
Percorrem trilhas erráticas e vão construindo trajetórias fragmentariamente. Mesmo assim, cumulam experiências que os vão transformando e degradando aos poucos.
A burguesa transformada na própria criada e prostituída. O homem baleia vindo do mar e moldado às perdições do mercado. Os irmãos Esaú e Jacó fundidos numa menina morta sempre ressuscitada. A cigana martirizada por passaporte europeu. A vidente ferrada pelo espírito do filho. E Cândida, neta de avó desalmada, vestígio mais nítido de García Márquez.
Seria injusto reduzir a montagem a esses percursos, pois as associações alegóricas não são seu aspecto mais interessante.
De muito mais impacto é o desempenho dos sete atores, vibrante e apaixonado. Dois destaques são Danilo Grangheia, duplicando-se em Esaú e Jacó e fazendo uso maravilhoso de tintas e grafites, e Val Pires, pela versatilidade camaleônica com que desenvolve seu baleia.
A escritura cênica também é um trunfo e denota um encenador maduro, no pleno domínio do espaço que vem construindo há mais de uma década. Isso aparece, sobretudo, no controle da curva ascendente da trama espetacular, quando se configuram as metáforas mais agudas do eclipse da civilização e do navio que está indo a pique.
"Êxodos" é um espetáculo de fôlego, que exige um público com estômago para engolir sapos e sonhar com os anjos, ou para tornar pesadelos anunciados em sonhos de redenção. Como uma "missa leiga" do fim dos tempos, ressalta o que estaria morto para buscar nos escombros o que pode estar vivo.


ÊXODOS - O ECLIPSE DA TERRA

Quando: qui. a sáb., às 21h; dom., às 20h; até 30/5
Onde: Galpão do Folias (r. Ana Cintra, 213, tel. 0/xx/11/3361-2223)
Quanto: de R$ 10 a R$ 30
Classificação: 14 anos
Avaliação: bom




Texto Anterior: Tentações
Próximo Texto: Mostra do Oficina busca dimensões de estádio
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.