São Paulo, terça-feira, 29 de maio de 2001

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ARNALDO JABOR

As patrulhas ideológicas paralisam o país

"Ideologia ... preciso de uma para viver!", cantou o grande Cazuza. Um dos problemas brasileiros de hoje é que o mundo ficou muito complicado para caber em duas ou três categorias. Direita, esquerda, centro. Muito pouco. Na verdade, há tantas ideologias quanto há neuroses, todas lutando para caber nas categorias principais. "De esquerda" todo mundo quer ser, porque a palavra guarda uma conotação com a idéia de "amor" ao povo, da solidariedade. "Direita" é o nome dos malvados, dos egoístas. "De centro" seria o pensamento banho-maria, "in medio virtus", nem tanto ao mar nem tanto à terra.
A perplexidade geral diante da crise brasileira está nos exibindo uma "féerie", um show de mil ideologias que se digladiam e se anulam, mantendo o país parado, exposto a uma eterna dependência, incapaz de traçar uma linha de ação prática e original. Façamos então um teste ideológico com o querido leitor, meu semelhante e irmão. Descubra em que grupo de risco político você está.
Neoliberais radicais - Acham que o país é uma teia de números e estatísticas de um transcendental ajuste fiscal que nos levará ao paraíso do FMI. São obedientes às regras do Fundo e esquecem que tem gente morando aqui dentro. Dá em apagão.
Amantes do impossível - O contrário do grupo anterior. Odeiam a administração e limites concretos. Odeiam o mundo real. Usam as utopias como calmante da consciência.
Militantes imaginários - Acham que estão fazendo a revolução, sem mover uma palha, de pijama em casa, rezando as jaculatórias que aprenderam no cursinho básico do Partidão, 50 anos atrás.
Narcisistas do fracasso - Acham que todos estão errados, todos não prestam. Menos eles, puros e privilegiados espectadores da história.
Otimistas irresponsáveis - É a doença infantil dos tucanos. Acreditam no "processo" e nada fazem para conduzi-lo. "A gente vai empurrando com a barriga a crise da energia, que acaba chovendo."...
Autoritarismo salvacionista-voluntarista - "Se eu for presidente, boto pra quebrar. Não tem Congresso não tem nada...". Já deu em Collor.
A ideologia da Pedra da Gávea - Os adeptos desta corrente não mudam um milímetro de suas convicções. Acham a realidade volúvel e reacionária, com sua mania de nos surpreender com mudanças e reviravoltas.
A ideologia das "saudades do matão" - São os regressistas. "Ah... como era verde meu vale... ah... como tudo era simples... ah... que saudades das certezas e das ilusões..."
Os industriais da seca do espírito - Cultivam o povo como relíquias medievais. "Ah... como é bela e fecunda a miséria... como ela cria uma sagrada ignorância e uma arte tosca e emocionante...".
Os adoradores da derrota - "Ah... como é belo o fracasso... O esquartejamento, a força, a cruz nos mostram que os heróis e mártires estavam certos." A derrota é sagrada, a vitória é burguesa, imoral.
Populismo "Jeca Tatu" ou "neo-galinhas verdes" - Itamar vem aí. Anauê!
A copro-ideologia ou os "papa-bostas" - Acham que só uma grande tempestade de merda salva o país... Depois do excremento, virá a bonança. Gostam do "quanto pior, melhor" a catástrofe purificadora.
Os intelectuais horrorizados - Têm nojo do mundo real. Olham muito o infinito e acham que o simples desgosto com o rumo das coisas lhes dá uma superioridade moral. Sonham com um outro Brasil, que está além do horizonte. Assistem caladinhos à sordidez nacional. Não se metem nessas coisas sujas da política.
Os cientistas niilistas - Têm a crítica perfeita do sistema e também a solução, desde que a correlação de forças, as "condições objetivas" do mundo mudassem. Como não mudam, não há solução, que ele lamenta, do alto de seus tristes compêndios, em casa, de cardigan e uísque.
Os acadêmicos do rancor - Sabem tudo e não fazem nada. Ressentidos, sentem-se vítimas de um mundo mau, que transformou sua vida acadêmica em apostilas sem utilidade. Patrulham os que partem para alguma ação concreta e possível.
Os bolchevistas udenistas - Um tipo novo que mistura moralismo pequeno-burguês com golpismo. Mix de Carlos Lacerda com Prestes. Muito ativos hoje em dia.
Os donos da miséria - Proprietários do sofrimento alheio. Consideram a tragédia dos excluídos como um problema existencial deles. Lamentam-na e sentem-se bons.
Os ignorantes iluminados - Proclamam sua ignorância como uma forma superior de sensibilidade. Costumam escrever: "Não sei não... mas acho que..." Outro dia, um deles escreveu que "seu pâncreas intuía que...". Pensam com o fígado ou com os intestinos. Têm muito ibope. Burrice agrada.
Os simplistas profundos - Só o óbvio, o esquemático, o aparente importam. Complexidade é coisa de reacionário ou de veado.
Os nostálgicos da porrada - Tipo de masoquista que se orgulha da cacetada que levou em 68 e morre de saudades de uma ditadura que os absolva e justifique.
Os fracassados revolucionários - É um tipo que acha que é fracassado porque é "de esquerda". Não lhe ocorre que seja "de esquerda" porque é fracassado.
As vítimas da grande conspiração - A vida é um conto-do-vigário em que caímos todos. São o contrário dos beckettianos, dos niilistas, dos deprimidos. Para eles, tudo tem sentido. Quanto mais óbvia uma realidade, mais perigosa. Tudo que parece, não é. Tudo é uma grande conspiração.
Os patrulheiros ideológicos - Descobertos por Carlos Diegues, há 25 anos. São os precursores dos sabotadores sem programa de hoje. Continuam trabalhando, com seus dedos duros cheios de luz.
Em que tipo você se enquadra? Todas essas figuras ficam inquietas diante da liberdade. Democracia lhes aumenta a paranóia. E com esta apoteose de utopias, tudo que é técnico, administrativo, urgente é esquecido, subestimado, para alegria dos fisiológicos, corruptos e dos especuladores internacionais. E, assim, lá vai o Brasil descendo a ladeira.



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