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O dicionário sai do armário
"Aurélia", livro que cataloga termos do mundo gay, é lançado em São Paulo; família de Aurélio Buarque de Holanda e editora Positivo rejeitam a "homenagem"
NINA LEMOS
COLUNISTA DA FOLHA
Será lançada amanhã, em
meio a polêmicas, a livra "Aurélia, A Dicionária da Língua
Afiada" (143 págs., R$ 24), pela
Editora da Bispa. A frase acima
está escrita na forma preferida
de comunicação entre alguns
dos integrantes do mundo gay,
sempre colocando as palavras
no feminino.
Isso, segundo os (ou as) autores do primeiro dicionário de
expressões gays do Brasil, o jornalista Victor Ângelo, 38, que
assina com o codinome de Ângelo Vip, e Fred Libi, que prefere não se identificar e é descrito
na obra como um "gay de nascença que refugiou-se nos estudos para entender o mundo que
o hostilizava". De acordo com
eles, o que era "o",vira "a" entre
os homossexuais (leia ao lado).
O título é uma alusão ao famoso "Aurélio", de Aurélio
Buarque de Holanda, um dos
maiores lexicógrafos do Brasil,
morto em 1989. "Aurélia" contém 1.300 verbetes, todos descritos, na forma, como em um
dicionário tradicional.
"O nome é uma homenagem
ao Aurélio. Ele é pop. Tanto que
quando você fala em um Aurélio, se refere a um dicionário.
Seria muito feio se fosse
Houaissa [referência ao autor
do "Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa", de Antonio
Houaiss]. A prova de que é uma
homenagem é que não chamamos o livro de "Houaissa'", explica Victor Ângelo.
Homenagem dispensada
A tal "homenagem" não agradou a família do dicionarista
nem a editora Positivo, que detém os direitos sobre as edições
e comercialização do "Aurélio"
desde 2003. O diretor de marketing do grupo Positivo, André
Caldeira, afirmou que "tomaria
todas as medidas judiciais cabíveis para defender a marca".
"Quero deixar claro que não é
uma prática de homofobia. É
proteção a uma marca", disse.
Segundo Caldeira, "Aurélia" seria uma "deturpação do nome".
"Estão pegando carona em uma
instituição muito importante."
O advogado José Pinheiro,
um dos proprietários da Editora do Bispo, discorda. "A própria Lei dos Direitos Autorais
diz que são livres as paráfrases
e paródias que não forem verdadeiras reproduções da obra
original nem lhe impliquem
descrédito. É o caso do "Aurélia", que além de não desobedecer a lei, acaba prestando uma
homenagem."
A viúva de Aurélio Buarque
de Holanda, a também lexicógrafa Marina Baird Ferreira,
83, afirmou, por e-mail, que a
família "dispensa a homenagem". "A família em nome do
falecido autor declara-se contrária a qualquer demonstração de homofobia, mas dispensa essa "homenagem" ao dicionário." De acordo com Ivan
Junqueira, membro da Academia Brasileira de Letras, "é interessante que exista no Brasil
um dicionário de expressões
gays". "Só acho que eles pegaram pesado com a brincadeira e
erraram na mão. O Aurélio é
uma instituição brasileira."
Longe das polêmicas, o autor
Victor Ângelo afirma que prefere chamar o livro de "dicionária" e que acha que a catalogação das expressões gays é importante. "Além disso, o livro
pode ser usado para que os pais
entendam o que os filhos falam.
E também para que bofes (heterossexuais masculinos) compreendam melhor as frases de
suas namoradas, já que muitas
mulheres falam como os gays."
Código dos travestis
De acordo com ele, o livro foi
feito por pesquisas realizadas
por ele e Fred Lip há cerca de
dez anos. "Começamos a perguntar para amiguinhos e amiguinhas. Conversamos com
gente do Rio Grande do Sul,
Pernambuco e Ceará e também
com amigos portugueses. E
também entrevistei travestis",
explica Ângelo.
Os travestis são os responsáveis, de acordo com ele, por boa
parte dos termos. "O bajubá
[linguagem usada pelos travestis] é muito interessante, pois
antes era um código entre eles.
Quando dizem, por exemplo,
"aqüenda o alibã", querem dizer
cuidado com a polícia."
O tom de "Aurélia" é bastante politicamente incorreto. Na
primeira página, eles já avisam:
"Este dicionário não tem a pretensão de ser politicamente
correto. Muitos termos são
chulos e pejorativos, podendo
ser ofensivos para determinadas pessoas ou grupos. Nesse
caso, recomendamos a interrupção imediata da leitura".
"Não teria graça alguma fazer
um livro gay politicamente correto. E também, que coisa chata
ter que ser chamado de gay. É
viado, é bicha. Muitos grupos
ficam com essa coisa de chamar
de "homossexualidade", o que é
uma chatice."
Apesar de escrito por dois
homossexuais, o livro várias vezes tira sarro dos próprios gays.
No verbete "piti", por exemplo,
eles explicam: "Nervosismo,
histeria, ataque de bichice".
Apesar de tão "incorreto politicamente", parte da renda
obtida será doada a instituições
de apoio a soropositivos.
A noite de autógrafos é amanhã, às 18h30, na Livraria Cultura, no Conjunto Nacional, av. Paulista, 2.073, em São Paulo.
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