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GUILHERME WISNIK
Estuporador da ilusão
Canções de Chico Buarque acompanham um cenário movente de desagregação social na paisagem urbana
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NÃO É de hoje que as canções
de Chico Buarque traduzem
com precisão o instante presente do Brasil, captado em sua essência nem sempre explícita. A lista
desses emblemas de época atravessa
décadas, passando por canções como "Sabiá" (1968), "O que Será"
(1976), "Bye Bye Brasil" (1979), "Estação Derradeira" (1987) e "Sonhos
Sonhos São" (1998). Mas também
não é de hoje que as suas canções
deixaram de estar coladas à circunstância política e à exaltação emotiva
que as acompanhava em hinos como
"Apesar de Você" (1970) e "Vai Passar" (1984). Sob as esperanças e frustrações da volta à normalidade democrática no país, desde o final dos
anos 80 suas melodias se tornaram
mais tortuosas, as harmonias mais
complexas e a temática subliminar.
Vem de longe, portanto, o estranhamento formal das suas canções,
que acompanham um cenário movente de desagregação social na paisagem urbana. De pesadelo a pesadelo, podemos ligar a cena de linchamento promovida por uma horda de
"nego humilhado", "morto vivo", de
1980, à visão de uma "legião de famintos" que se engalfinha sob a varanda de alguém que atira pérolas,
na canção de 98. Ou, também, ao cenário carioca em que contracenam,
entre a graça e a desgraça, o baile
funk, o reverendo lendo o Apocalipse e a prostituição infantil.
"Subúrbio", canção que abre o seu
novo CD, é o ponto cego daquela cidade. Se, no disco anterior, a "cidade
maravilhosa" é aquela que "quase
arromba a retina de quem vê", ela
agora é a paisagem que "não figura
no mapa", "avesso da montanha"
onde o Cristo "está de costas". Na
melodia em lamento de choro-canção, e incorporando a saudação das
rádios comunitárias ("Fala"), o cantor invoca os nomes dos bairros
(Irajá, Acari...) num chamamento
seco, que parece o avesso da compaixão idealizada de "Gente Humilde"
(1970). "Carrega a tua cruz/ E os
teus tambores", diz a letra, numa
imagem de múltiplos sentidos, em
que os tambores são tanto batuques
quanto revólveres.
Na canção seguinte, Chico constrói um sonho impossível (utópico?), onde situações improváveis
parecem normais: "De mão em mão
o ladrão/ Relógios distribuía (...)/
Maconha só se comprava/ Na tabacaria". Ali, ao lado de imagens aparentemente singelas, surgem outras
terríveis, como a de "guris inertes no
chão" que "falavam de astronomia".
Um "sonho" que fala da impossibilidade dos sonhos.
Na terceira canção, uma embolada hip-hop, o ciclo se completa. Trata-se de uma ode ao "rato de rua":
"aborígene do lodo", "sobrevivente à
chacina e à lei do cão". Desnecessário, aqui, insistir sobre a atualidade
da canção. Chico toca no nervo da
erosão atual dos valores éticos (do
político ao humanitário), sob o embaralhamento social que imbricou
traficantes, policiais, classe média
etc. e gerou o horror indiscriminado
ao "marginal". Na violência da melodia, a voz que canta se irmana ao ser
que só se prolifera quando a cidade
está podre: "Saqueador da metrópole/ Tenaz roedor de toda esperança/
Estuporador da ilusão/ Ó meu semelhante/ Filho de Deus, meu irmão".
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