São Paulo, segunda-feira, 29 de maio de 2006

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NELSON ASCHER

Parece que foi ontem


Será que, na época em que notícias chegavam tremidas, a gente era feliz e não sabia?

QUEM NASCEU lá pelo final da Guerra Fria deve agora estar no cursinho e na auto-escola. Testemunha táctil que fui do processo coroado com a derrubada do Muro de Berlim, ainda redigi e enviei ao jornal despachos com a ajuda do telex, um aparelho heróico e esquecido para o qual, aliás, a firma de meus pais fabricava as melhores fitas impressoras do Brasil. Fitas impressoras!
Minha conexão inaugural à internet (demorada, instável e, a rigor, inútil) data de 95. O que fiz de início (surpresa) foi visitar o site da livraria Blackwell's de Oxford. Meses depois, um amigo saudoso precipitou a derrocada das parcas reservas familiares amealhadas graças ao produto acima. Chamava-se Roberto Ventura e me apresentou à "Amazon". Segundo meus cálculos, os prejuízos do decênio seguinte teriam sido bem menores caso, mudando-me para Las Vegas, eu fizesse análise sete vezes por semana e, nas horas vagas, me dedicasse à alta enologia.
A primeira Guerra do Golfo (1991), durante a qual, financiado por sauditas, japoneses e alemães, o primeiro presidente Bush expulsara Saddam Hussein do Kuait, país petrolífero que o iraquiano tomara como compensação por enfrentar, em nome dos árabes sunitas, o Irã revolucionário dos aiatolás xiitas, aquele conflito acompanhei através de uma maravilha recém-chegada aqui: a TV a cabo.
Qualquer um que não tenha tentado decifrar crises internacionais a partir dos noticiários das 8h e das 10h também ignora quão informado se sentiu um dia o espectador da CNN. Já no presente, se bem que possa ler em tempo real jornais do mundo inteiro, prefiro, julgando-os obsoletos ou demasiado parciais, embrenhar-me interativamente blogosfera adentro.
Mas tampouco faltaram, no entretempo, mudanças que sugerem menos progressos otimistas do que recuos rumo à barbárie atávica da espécie. Quantos anteviram, em meio à euforia das redemocratizações latino-americanas ou perante o colapso das tiranias soviéticas, que, por trás de eufemismos transparentes, os judeus se tornariam novamente a obsessão favorita (não apenas) dos seguidores e ex-seguidores das principais religiões monoteístas? Qual colega de meus verdes anos suporia que, tendo em vista o saldo meio insatisfatório do fascismo, comunismo e nazismo, ora repetidos como farsas sangrentas, os populismos reconquistariam respeitabilidade nestes trópicos de baixo, e que, meio milênio após a Grande Caça às Bruxas, superstição e teocracia voltariam, inclusive na Europa, à moda?
Será que, na época em que as notícias nos chegavam tremidas, em branco-e-preto, jornais de fora ou livros estrangeiros eram raridades cobiçadas, os uísques e queijos sempre nacionais, nós nos sentíamos de fato em casa? A gente era feliz e não sabia? Talvez porque não sabia? É duvidoso. Pois as alterações em curso são reais, complexas e cada vez mais aceleradas. Nunca antes, para bem ou mal, houve tamanha quantidade de pessoas (e tão interconectadas, mesmo que a contragosto) sobre a face da Terra. Só que, embora muito se altere cumulativamente, outro tanto resiste ao mais epidérmico dos câmbios.
Pior: enraíza-se em toda parte a ilusão de que, da expectativa de vida à autonomia individual, os progressos significativos não contam, enquanto características evidentemente pouco maleáveis da espécie (sua natureza, por exemplo) teriam, de modo definitivo, melhorado. Equivocadas, tais constatações levam massas e elites seja a menosprezarem (se não o desconhecem) o estado ineditamente saudável da economia planetária e seu crescimento constante, seja a, superestimando-o, julgarem o próximo de acordo com critérios que despertariam sorrisos irônicos nos rostos hirsutos de nossos ancestrais paleolíticos.
"Plus ça change, plus c'est la même chose" (quanto mais se muda, mais se fica na mesma), dizem os franceses. Nem por isso o surgimento de novos remédios e armas, veículos e roupas aposentou George Orwell e Tucídides, Dostoievski e Ésquilo. Quando é o comportamento humano que está em questão, tudo o que parece que foi ontem (ou antes) continua inalterado até hoje e, quanto ao futuro, bom, este a algum deus pertence.


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