São Paulo, sexta, 29 de maio de 1998

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O triste fim de um herói com caráter

Divulgação
Paulo José (esq.) em cena de "Policarpo Quaresma", filme dirigido por Paulo Thiago a partir de romance de Lima Barreto



"Policarpo Quaresma - Herói do Brasil", filme orçado em R$ 3 milhões, estréia hoje e traz Paulo José no papel-título, além de atores como Giulia Gam, Bete Coelho, Othon Bastos e José Lewgoy; a obra, dirigida por Paulo Thiago, é uma adaptação do romance "Triste Fim de Policarpo Quaresma", de Lima Barreto, e narra uma trajetória de lutas por ideais nacionalistas extravagantes


LÚCIA NAGIB
enviada especial ao Rio de Janeiro

O personagem de Policarpo Quaresma é um grande momento de um grande ator. Paulo José Gomez de Souza, ou simplesmente Paulo José, gaúcho de 61 anos, é íntimo do público brasileiro desde o teatro de Arena e o cinema novo.
Seu trabalho no cinema de autor brasileiro deixou marcos históricos, como "Todas as Mulheres do Mundo" (1966), "Macunaíma" (1969), "O Rei da Noite" (1975) e tantos outros.
Paulo José diz ter aguardado anos para encarnar Policarpo, "esse herói que é todo caráter" e representa a antítese de Macunaíma, "o herói sem nenhum caráter". Com esses dois, ele fecha o perfil do "caráter brasileiro", que, como ninguém, especializou-se em interpretar.
Ele se dedica atualmente a vários projetos concomitantes. Realiza uma oficina de direção para a Globo e prepara uma série de filmes para o canal GNT chamada "As Cidades e os Poetas".
No teatro, está traduzindo a peça de Jean Genet "O Balcão", que vai também dirigir. E ainda se prepara para estrear na direção de cinema com um filme sobre Giuseppe Garibaldi: "Acho que já adquiri alguma experiência nesse campo para poder dirigir", comenta, com modéstia.

Folha - Você fez aquele papel histórico de Macunaíma e, agora, interpretar Policarpo Quaresma vem realizar um desejo que você confessa ter tido por muito tempo.
Paulo José -
Desde "Macunaíma", Policarpo ficou ressoando como o oposto do Macunaíma, que é todo jeitinho brasileiro, a capacidade de adaptação às circunstâncias, um instinto de sobrevivência do colonizado com relação ao mais forte, o colonizador. Se você não tem forças, tem que apelar para o uso da astúcia.
O Macunaíma é da mais absoluta indignidade, mentiroso, usa a autopiedade para se dar bem. Já o Policarpo não está preocupado consigo mesmo nunca, está preocupado com o Brasil.
Folha - Você fala de "perplexidade" como uma característica do personagem do Policarpo, dizendo que esse seria o ponto pelo qual você se identifica com ele.
Paulo José -
Cada ator, na verdade, faz apenas um personagem. São os traços característicos de sua própria personalidade, do seu caráter, que acabam se impondo. Você vê as coisas sob um ponto de vista que é o da sua experiência humana. O que eu chamo de perplexidade é uma certa parvoíce: sou um pouco idiota. Idiota no sentido do príncipe Mishkin, do Dostoiévski. É como se faltasse uma esperteza, e você fica meio atrapalhado com as coisas. É a característica de um ator como Woody Allen, por exemplo, que tem uma certa perplexidade, uma parvoíce, uma ingenuidade, uma dificuldade de resolver objetivamente as situações.
Folha - Você tem essa formação do teatro de Arena e do cinema novo, que trabalhavam em torno da questão do projeto nacional. Essa questão se diluiu, mas "Policarpo" tenta levantá-la de novo.
Paulo José -
Nacionalismo pode ser chauvinismo, xenofobia, fascismo, nacional-socialismo, pode ser discriminatório. Hoje, na Europa, um nacionalismo como o francês é um nacionalismo de direita. Eles vêem uma "invasão" africana, que na verdade é uma resposta ao colonialismo. Esse fechamento é absolutamente fascista. Mas num país como o nosso, periférico, ocorre o contrário. É preciso fazer todo um esforço para manter as pertinências, a identidade, as raízes.
Folha - O que você acha das transformações que o roteiro promoveu com relação ao livro? Por exemplo, a sexualização do Quaresma, que, no livro, é inteiramente assexuado, ele é idéia somente, quase não tem corpo.
Paulo José -
Policarpo era um misógino mesmo. Um solitário de hábitos absolutamente metódicos. E eu não veria qualquer inconveniente em mantê-lo assim no filme. Já a opção do Alcione Araújo (o roteirista) e do Paulo Thiago (o diretor) foi que, do ponto de vista da comunicação do personagem, seria mais interessante se ele tivesse um pouco mais de carne, de impulso sexual direto. Isso aumentaria a possibilidade de identificação. Acho que, do ponto de vista estratégico, essa modificação foi interessante, embora pudesse ter sido feita de outro modo. Ele está impregnado de Brasil, lê metodicamente, dedica-se ao estudo do tupi-guarani, e isso faz com que sua sexualidade seja sublimada e devotada a uma causa, a de reformar o país.
Folha - Você contracena com Othon Bastos (o marechal Floriano) em momentos brilhantes do filme. Como se deu essa alquimia entre vocês?
Paulo José -
Gosto muito de trabalhar com Othon, temos uma identificação desde o cinema dos anos 60. Ele é um ator muito seguro, tem uma solidez enorme. Então era agradável trabalhar com a solidez do Floriano, o Policarpo meio saltando à volta ansiosamente, com uma certa inocência.
Folha - O que você acha do cinema brasileiro atual? Quais os filmes que, na sua opinião, apontam para um caminho interessante?
Paulo José -
Por exemplo, a trajetória Walter Salles, desde "A Grande Arte" até "Central do Brasil", é extraordinária. Houve um momento, há poucos anos, em que se achou que o caminho para o cinema brasileiro era a internacionalização, era ser falado em inglês. Isso cria filmes de segunda categoria, que não interessam para nós e, fora daqui, são produções secundárias. "A Grande Arte" entra nesse movimento da internacionalização do cinema. O resultado foi ruim. Ele descobriu, felizmente, que o caminho não era esse. "Carlota Joaquina" apontou o caminho: o brasileiro quer se ver, quer se reconhecer no cinema. Diante da idéia de abertura neoliberal, aparece de forma quase inconsciente um instinto de sobrevivência: você precisa se identificar para sobreviver.



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