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O triste fim de um herói com caráter
Divulgação
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Paulo José (esq.) em cena de "Policarpo Quaresma", filme dirigido por Paulo Thiago a partir de romance de Lima Barreto
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"Policarpo Quaresma - Herói do Brasil", filme orçado em
R$ 3 milhões, estréia hoje e traz Paulo José no
papel-título, além de atores como Giulia Gam, Bete
Coelho, Othon Bastos e José Lewgoy; a obra, dirigida por
Paulo Thiago, é uma adaptação do romance "Triste Fim
de Policarpo Quaresma", de Lima Barreto, e narra uma
trajetória de lutas por ideais nacionalistas extravagantes
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LÚCIA NAGIB
enviada especial ao Rio de Janeiro
O personagem de Policarpo
Quaresma é um grande momento
de um grande ator. Paulo José Gomez de Souza, ou simplesmente
Paulo José, gaúcho de 61 anos, é
íntimo do público brasileiro desde
o teatro de Arena e o cinema novo.
Seu trabalho no cinema de autor
brasileiro deixou marcos históricos, como "Todas as Mulheres do
Mundo" (1966), "Macunaíma"
(1969), "O Rei da Noite" (1975) e
tantos outros.
Paulo José diz ter aguardado
anos para encarnar Policarpo,
"esse herói que é todo caráter" e
representa a antítese de Macunaíma, "o herói sem nenhum caráter". Com esses dois, ele fecha o
perfil do "caráter brasileiro",
que, como ninguém, especializou-se em interpretar.
Ele se dedica atualmente a vários
projetos concomitantes. Realiza
uma oficina de direção para a Globo e prepara uma série de filmes
para o canal GNT chamada "As
Cidades e os Poetas".
No teatro, está traduzindo a peça
de Jean Genet "O Balcão", que
vai também dirigir. E ainda se prepara para estrear na direção de cinema com um filme sobre Giuseppe Garibaldi: "Acho que já adquiri alguma experiência nesse campo para poder dirigir", comenta,
com modéstia.
Folha - Você fez aquele papel histórico de Macunaíma e, agora, interpretar Policarpo Quaresma vem
realizar um desejo que você confessa ter tido por muito tempo.
Paulo José - Desde "Macunaíma", Policarpo ficou ressoando
como o oposto do Macunaíma,
que é todo jeitinho brasileiro, a capacidade de adaptação às circunstâncias, um instinto de sobrevivência do colonizado com relação
ao mais forte, o colonizador. Se
você não tem forças, tem que apelar para o uso da astúcia.
O Macunaíma é da mais absoluta
indignidade, mentiroso, usa a autopiedade para se dar bem. Já o Policarpo não está preocupado consigo mesmo nunca, está preocupado com o Brasil.
Folha - Você fala de "perplexidade" como uma característica do
personagem do Policarpo, dizendo
que esse seria o ponto pelo qual
você se identifica com ele.
Paulo José - Cada ator, na verdade, faz apenas um personagem.
São os traços característicos de sua
própria personalidade, do seu caráter, que acabam se impondo.
Você vê as coisas sob um ponto de
vista que é o da sua experiência humana. O que eu chamo de perplexidade é uma certa parvoíce: sou
um pouco idiota. Idiota no sentido
do príncipe Mishkin, do Dostoiévski. É como se faltasse uma
esperteza, e você fica meio atrapalhado com as coisas. É a característica de um ator como Woody Allen, por exemplo, que tem uma
certa perplexidade, uma parvoíce,
uma ingenuidade, uma dificuldade de resolver objetivamente as situações.
Folha - Você tem essa formação
do teatro de Arena e do cinema
novo, que trabalhavam em torno
da questão do projeto nacional.
Essa questão se diluiu, mas "Policarpo" tenta levantá-la de novo.
Paulo José - Nacionalismo pode ser chauvinismo, xenofobia,
fascismo, nacional-socialismo,
pode ser discriminatório. Hoje, na
Europa, um nacionalismo como o
francês é um nacionalismo de direita. Eles vêem uma "invasão"
africana, que na verdade é uma
resposta ao colonialismo. Esse fechamento é absolutamente fascista. Mas num país como o nosso,
periférico, ocorre o contrário. É
preciso fazer todo um esforço para
manter as pertinências, a identidade, as raízes.
Folha - O que você acha das
transformações que o roteiro promoveu com relação ao livro? Por
exemplo, a sexualização do Quaresma, que, no livro, é inteiramente assexuado, ele é idéia somente,
quase não tem corpo.
Paulo José - Policarpo era um
misógino mesmo. Um solitário de
hábitos absolutamente metódicos.
E eu não veria qualquer inconveniente em mantê-lo assim no filme. Já a opção do Alcione Araújo
(o roteirista) e do Paulo Thiago (o
diretor) foi que, do ponto de vista
da comunicação do personagem,
seria mais interessante se ele tivesse um pouco mais de carne, de impulso sexual direto. Isso aumentaria a possibilidade de identificação. Acho que, do ponto de vista
estratégico, essa modificação foi
interessante, embora pudesse ter
sido feita de outro modo. Ele está
impregnado de Brasil, lê metodicamente, dedica-se ao estudo do
tupi-guarani, e isso faz com que
sua sexualidade seja sublimada e
devotada a uma causa, a de reformar o país.
Folha - Você contracena com
Othon Bastos (o marechal Floriano) em momentos brilhantes do
filme. Como se deu essa alquimia
entre vocês?
Paulo José - Gosto muito de
trabalhar com Othon, temos uma
identificação desde o cinema dos
anos 60. Ele é um ator muito seguro, tem uma solidez enorme. Então era agradável trabalhar com a
solidez do Floriano, o Policarpo
meio saltando à volta ansiosamente, com uma certa inocência.
Folha - O que você acha do cinema brasileiro atual? Quais os filmes que, na sua opinião, apontam
para um caminho interessante?
Paulo José - Por exemplo, a trajetória Walter Salles, desde "A
Grande Arte" até "Central do
Brasil", é extraordinária. Houve
um momento, há poucos anos, em
que se achou que o caminho para o
cinema brasileiro era a internacionalização, era ser falado em inglês.
Isso cria filmes de segunda categoria, que não interessam para nós e,
fora daqui, são produções secundárias. "A Grande Arte" entra
nesse movimento da internacionalização do cinema. O resultado
foi ruim. Ele descobriu, felizmente, que o caminho não era esse.
"Carlota Joaquina" apontou o
caminho: o brasileiro quer se ver,
quer se reconhecer no cinema.
Diante da idéia de abertura neoliberal, aparece de forma quase inconsciente um instinto de sobrevivência: você precisa se identificar
para sobreviver.
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