São Paulo, sexta, 29 de maio de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Brevíssima história sócio-política do Rio

CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial


No início do século 20, o Rio de Janeiro permanecia praticamente o mesmo dos últimos tempos do Império. A República mal completara sua primeira década, e, na austeridade dos regimes que decidem instaurar uma nova era, quase nada ou nada se fazia pela cidade, ex-capital de um reino, ex-capital do império e -sempre- uma aldeia de feição ainda colonial, mesquinha, suja.
Tirante os primeiros momentos da vinda da corte de dom João 6º, quando alguma coisa foi feita para tornar a cidade mais habitável, o Rio só progredia espasmodicamente, sem planejamento nem verbas. Com o advento da república, as prioridades seriam outras, de ordem institucional e (à falta de palavra melhor) moral.
Os visitantes que aqui chegavam ficavam duplamente espantados: com a beleza da natureza, montanha e mar formando um conjunto que não encontra igual em nenhuma outra parte do mundo; e com a sujeira, a falta de higiene, de conforto, às vezes, daquele mínimo de decência urbana.
Estava longe, ainda, a administração de Pereira Passos, o prefeito que, no governo de Rodrigues Alves, transformaria o Rio numa metrópole moderna. Longe também estavam os tempos de Osvaldo Cruz, que sanearia a cidade de febres, vergonhosas já para o estágio de civilização que a humanidade atingira. O depoimento dos estudiosos da história carioca é constrangedor.
Como sempre acontece em ambientes assim, havia uma casta de "marginais para cima" -ou seja, de ex-fidalgos e aristocratas que viviam literalmente à margem dessa pobreza que já era miséria em muitos sentidos. Remanescentes da nobreza imperial, enriquecida pelos privilégios provenientes do poder em São Cristóvão, senhores do café e dos engenhos-de-açúcar para os quais o Rio continuava sendo a corte, embora a república, numa de suas providências iniciais, a tivesse rebaixado para o feio nome de "Capital Federal".
Nessa capital federal funcionava a cúpula da administração republicana. Uma nova classe sobrepunha-se à antiga, de feição feudal: surgia o funcionário, novos hábitos deslocavam o eixo social, São Cristóvão deixava de ser bairro nobre, a nascente burguesia descobria o litoral e o botafogano (morador de Botafogo) ocupou o vértice da pirâmide urbana.
Bem verdade que, no seu centro propriamente dito, o Rio continuava com a rua do Ouvidor, empoeirada, mas esforçada em sua tentativa de ser civilizada. Foi da sacada de um de seus prédios que um jornalista da "Gazeta de Notícias" bradou para as elegantes que por ali desfilavam: "O Rio civiliza-se!".
O clima geral, tanto da cidade como de seus moradores, era o de tentar o máximo: ser uma réplica de capital européia, principalmente de Paris. Da mesma forma que a classe política procurava em vão copiar os padrões liberais dos norte-americanos, o resto da sociedade procurava copiar os padrões da moda e do estilo de vida parisienses.
No terreno das artes, não tínhamos um Eça de Queiroz que nos declarasse "um choldra" -pecado que os lisboetas até hoje não lhe perdoam. Tínhamos, é certo, mais e melhor, com Machado de Assis, um mulato pobre, nascido num morro que, à época, nem tinha direito ao nome de "favela". Herança de sua miséria inicial, Machado de Asis recusou-se a pintar a realidade física que o rodeava, não nos deixou paisagens nem costumes, interiorizou-se e -ao que consta- justamente por não pretender imitar ninguém, tornou-se o único escritor brasileiro de estatura universal.
Na música, a corte vinda com dom João 6º nos trouxe alguns profissionais que nem eram autênticos: copiavam os autores da corte de Viena. Mesmo assim, tivemos outro mulato de gênio, que explodiu todas as chamadas "normas" e deixou-nos um apreciável legado de obras realmente nossas. O caso do padre José Maurício repetira-se, com mais vigor e genialidade, em outro mulato, o mineiro Aleijadinho.
Foram expressões isoladas da nascente cultura nacional. Predominava, nas artes como em tudo o mais, o excelente recurso de copiar o que parecia estar dando certo na Europa. Na pintura, alguns mestres de incontestável valor, como Pedro Américo, compunham seus enormes painéis à David. A mania -como a confusão machadiana- era geral.
Da corte de dom João 6º ao governo de JK, que transferiu a capital da República para o planalto, o Rio pagou um preço altíssimo por ser uma corte, no início, de uma casta de nobres europeus que fugiam de Napoleão, mais tarde, de uma casta de políticos federais que aqui vinham com suas famílias, a oficial e a bastarda, gozar a tal civilização anunciada pela "Gazeta de Notícias".
O carioca ficou aliviado com a mudança da capital. Mas por pouquíssimo tempo. Sendo um povo tradicionalmente do contra, sempre fez oposição aos governos federais. Daí que o regime autoritário dos militares extinguiu o vigoroso Estado da Guanabara, anexando-o ao fatigado Estado do Rio.
Tudo se complicou em termos de cidade e de Estado. Ficou somente a obstinação de ser contra a corrente: as últimas pesquisas eleitorais mostram que fluminenses e cariocas são os que mais rejeitam o governo neoliberal e globalizado de FHC.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.