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Pioneiro da dança de rua no país, Nelson Triunfo fala sobre rap, teatro, samba e política
O último black power
Lenise Pinheiro/Folha Imagem
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O dançarino e rapper Nelson Triunfo, 46, que prepara disco e participa da peça "Ooze/Ezoo" |
PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL
Um dia uma tartaruga quase
caiu na cabeça cabeluda de Nelson Triunfo, quando ele parava
com sua gangue de dançarinos de
rua no calçadão em frente às
Grandes Galerias, no centro paulistano. O bicho veio do céu (ou
melhor, do jardim suspenso do
edifício), passou raspando por ele
e se espatifou no chão. Não demorou nada a ser cercada por meninos de rua, que levaram-na embora aos pedaços. Para comê-la.
Um dos introdutores da dança
de rua -por consequência, do
hip hop e de várias manifestações
da cultura negra- no Brasil e em
São Paulo, Nelson Triunfo, 46,
conta essa história como a mais
incrível que viveu no centro da cidade, seu palco de expressão e segunda casa desde 1976.
Ali já tomou muita dura da polícia e muito chiclete e bituca acesa
de cigarro no cabelão que cultiva
sem cortar desde a adolescência.
"Sou o único black power que
permaneceu até hoje aqui", orgulha-se, preconceitos à parte.
Virou uma referência underground, a ponto de viver de dançar -e dos projetos sociais nada
paralelos que cumpre na periferia. Cult, chega ao teatro participando da peça "Ooze/Ezoo (Es-Co-Ar)", da cia. Corpos Nômades, que esteve no festival de Curitiba e chega a São Paulo nos dias
14 e 15 de julho, no Sesc Pompéia.
A historinha da tartaruga, episódica, ressurge como alegoria do
personagem: o perigo passando
rente à cabeleira rebelde, a grandeza conturbada do centro deteriorado, a proximidade doída da
miséria dos garotos de repente
convertidos em gourmets de carne de tartaruga. Com a palavra,
Nelson Triunfo.
Folha - De onde é seu sotaque?
Nelson Triunfo - Já misturou tudo. Nasci em Triunfo, Pernambuco, e ainda adolescente saí para
Paulo Afonso (BA), para estudar.
De lá, fui para Brasília. Estudava e
trabalhava em topografia, trabalhei em vários viadutos, asfaltos e
prédios de Brasília. Conheço o
Distrito Federal por dentro e por
fora. Morei na maior favela do
mundo na época, Ceilândia -o
militarismo escondia, só queria
mostrar o Plano Piloto. E frequentava os bailes, descia ao Plano Piloto para curtir soul.
Em 76, vim para São Paulo. Aí já
não trabalhei mais com nada a
não ser dentro da dança. Sobreviver só da dança foi muito difícil,
havia os preconceitos. Estavam
começando os bailes black em
São Paulo, na primeira semana já
fui a uma festa. O baile foi enchendo, os "braus" começaram a pegar... Fui para a pista e soltei a
dança mesmo, de verdade.
Folha - Já tinha alguma semelhança com a dança de rua?
Triunfo - A dança de rua vem de
lá, dessa fonte. Muitas coisas saíram de James Brown, como a própria dança do Michael Jackson. O
break, mais tarde, veio se juntar a
um bocado de danças. Era soul
com capoeira, movimentos olímpicos, mímica, acrobacia, jazz e
afro, dança robótica.
Folha - O famoso cabelão começou a crescer quando?
Triunfo - É que em Triunfo, tempo de Roberto Carlos e Beatles, eu
era doido para deixar meu cabelo
crescer. Meus pais não deixavam.
Quando saí, deixar o cabelo crescer foi a primeira coisa que fiz. Era
para mim como a liberdade. Deixei crescer, na época chamava
pigmalião, com um rabo atrás,
muito gozado. Fiz 18 anos e fui para o Exército. Fiquei no excesso de
contingente, nem servi, mas os
caras cortaram meu cabelo, me
deixaram careca. Com raiva, nunca mais cortei desde 73. Acho que
sou o único black power da época
que permaneceu até hoje.
A partir do final de 70, começou
a entrar a discothèque, que quebrou muito o movimento. Vieram novas tendências, como new
wave e rap. Em 83 achei que já estávamos capacitados a sair para a
rua, como acontecia em Nova
York. Foi o primeiro contato do
movimento hip hop com a rua no
Brasil. Fomos primeiro para a
frente do Teatro Municipal, do
Mappin. Saiu muito na imprensa,
e em 84 já havia muita gente dançando. Foi quando parei, com estafa e esgotamento físico, porque
dançava muito e me alimentava
pouco. Em 86 já havia um movimento bom na estação São Bento,
foi quando chegou Thaíde e se
formaram as gangues. A partir daí
começou o verdadeiro hip hop,
com os quatro elementos.
No início dos anos 90, vi como
estava falho o lado social do movimento. Foi quando começou a
grande fase do hip hop no Brasil,
que era fazer valer o que a Zulu
Nation plantava: trocar a violência pela paz e pela arte. Os Racionais MC's começaram a fazer palestras nas escolas, na época de
Luiza Erundina. Fui para Diadema, e a prefeitura da época, do PT,
deu condição para trabalharmos.
Folha - Há uma relação entre a esquerda e o hip hop?
Triunfo - Há, sim, mas já cheguei
a uma nova conclusão agora. Sou
de esquerda, pensava que deveria
trabalhar só ali, mas o hip hop
tem que ser independente. Se um
outro governo precisar de nós,
podemos trabalhar, contanto que
não tenhamos que subir no palco
para pedir voto para ninguém ou
para dar crédito a eles. Se o crédito acontecer, que seja pelo trabalho feito. Uma das melhores coisas que fiz com hip hop foi na cidade de Barueri, que é PFL, o partido que mais detesto, do ACM.
Folha - Como você avalia a atuação dos Racionais no movimento?
Triunfo - Nos anos 90, com os
Racionais, o movimento tomou
uma conotação mais política,
mais voltada para os grandes problemas da periferia. Respeito
muito o trabalho deles. Claro que
também há falhas entre os grupos
maiores, muitos falam muito em
preconceito, mas ainda têm preconceito de homem usar brinco,
machismo. Mas a posição política, de denúncia, ajuda demais.
Folha - O que acha das críticas de
que o rap incitaria à violência?
Triunfo - Isso é uma faca de dois
gumes. A violência é uma realidade que existe na periferia. Quem
já não viu caminhão do IML saindo lotado de cara de pés juntos lá
da favela? Quem já viu moleque
pequenininho chegar em casa gritando porque na rua está fogo
cruzado? É realidade. Aí me passam filme de "Rambo", aquilo pode acontecer numa boa e ninguém fala nada? Só odeiam violência quando é falada por pessoal
da periferia. Será que não plantaram a violência na periferia, roubando dinheiro dos cofres públicos e desviando INPS para ilhas
não sei quais? Esse dinheiro aí seria investimento em saneamento
básico, educação. Não, com direito de estudar e bem guardados em
seus muros, eles plantaram o vírus do mal e da violência na periferia.
Folha - Carlinhos Brown diz que a
música é um lugar de alegria, que
não devia conter esses assuntos.
Triunfo - Não concordo com ele.
Ele está num momento bom, tudo para ele brilha. Só que ele não
fala que em Salvador há favela
com morador pisando dentro do
esgoto, enquanto aquele ACM
põe refletores na praia. Não fala
que a maioria da população é negra e que quem tem os grandes
empregos lá são os brancos. Há
um baita racismo na cidade de
Salvador, e ele não fala disso.
Carlinhos Brown faz um trabalho legal com a molecada de lá,
mas não posso deixar meu filho
muito romântico e certinho demais. O que adianta eu ensinar
música para um moleque meu, se
o da classe média ou alta vai conseguir muito mais oportunidades? Como o meu vai sobreviver
com os malandros, a falta de comida, sem ter acesso a jornalista?
Tenho que falar para Carlinhos
Brown que ele precisa passar a
consciência social também, não é
só ensinar a dança e a música. Senão podemos formar um grande
músico que toca para caramba,
mas na hora que abre a boca parece um esgoto, só fala besteira.
E Pelé? Estou vendo uma reportagem dele com a molecada do
Santos, primeiro ele diz assim:
"Não vamos denegrir nossa imagem". Como um cara negro vai
falar essa palavra? Quer dizer que
se enegrecer não presta? Aí logo
depois diz: "Aquele que não for
bom aluno na escola e não estiver
bem em casa com o pai e a mãe
não vai fazer parte do trabalho".
Poxa, aquele moleque que ia roubar é o que mais precisa da ajuda
dele no futebol, e é o primeiro a
ser jogado fora? Quem é o pobre
que não tem problema em casa?
Como você pode ir bem na escola
se está com fome, se sua mãe levou um pisa de seu pai que chegou bêbado em casa? Ele não entende nada do social, pelo amor
de Deus, volta para jogar bola.
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