São Paulo, sexta-feira, 29 de junho de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Pioneiro da dança de rua no país, Nelson Triunfo fala sobre rap, teatro, samba e política

O último black power

Lenise Pinheiro/Folha Imagem
O dançarino e rapper Nelson Triunfo, 46, que prepara disco e participa da peça "Ooze/Ezoo"


PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL

Um dia uma tartaruga quase caiu na cabeça cabeluda de Nelson Triunfo, quando ele parava com sua gangue de dançarinos de rua no calçadão em frente às Grandes Galerias, no centro paulistano. O bicho veio do céu (ou melhor, do jardim suspenso do edifício), passou raspando por ele e se espatifou no chão. Não demorou nada a ser cercada por meninos de rua, que levaram-na embora aos pedaços. Para comê-la.
Um dos introdutores da dança de rua -por consequência, do hip hop e de várias manifestações da cultura negra- no Brasil e em São Paulo, Nelson Triunfo, 46, conta essa história como a mais incrível que viveu no centro da cidade, seu palco de expressão e segunda casa desde 1976.
Ali já tomou muita dura da polícia e muito chiclete e bituca acesa de cigarro no cabelão que cultiva sem cortar desde a adolescência. "Sou o único black power que permaneceu até hoje aqui", orgulha-se, preconceitos à parte.
Virou uma referência underground, a ponto de viver de dançar -e dos projetos sociais nada paralelos que cumpre na periferia. Cult, chega ao teatro participando da peça "Ooze/Ezoo (Es-Co-Ar)", da cia. Corpos Nômades, que esteve no festival de Curitiba e chega a São Paulo nos dias 14 e 15 de julho, no Sesc Pompéia.
A historinha da tartaruga, episódica, ressurge como alegoria do personagem: o perigo passando rente à cabeleira rebelde, a grandeza conturbada do centro deteriorado, a proximidade doída da miséria dos garotos de repente convertidos em gourmets de carne de tartaruga. Com a palavra, Nelson Triunfo.

Folha - De onde é seu sotaque?
Nelson Triunfo -
Já misturou tudo. Nasci em Triunfo, Pernambuco, e ainda adolescente saí para Paulo Afonso (BA), para estudar. De lá, fui para Brasília. Estudava e trabalhava em topografia, trabalhei em vários viadutos, asfaltos e prédios de Brasília. Conheço o Distrito Federal por dentro e por fora. Morei na maior favela do mundo na época, Ceilândia -o militarismo escondia, só queria mostrar o Plano Piloto. E frequentava os bailes, descia ao Plano Piloto para curtir soul.
Em 76, vim para São Paulo. Aí já não trabalhei mais com nada a não ser dentro da dança. Sobreviver só da dança foi muito difícil, havia os preconceitos. Estavam começando os bailes black em São Paulo, na primeira semana já fui a uma festa. O baile foi enchendo, os "braus" começaram a pegar... Fui para a pista e soltei a dança mesmo, de verdade.

Folha - Já tinha alguma semelhança com a dança de rua?
Triunfo -
A dança de rua vem de lá, dessa fonte. Muitas coisas saíram de James Brown, como a própria dança do Michael Jackson. O break, mais tarde, veio se juntar a um bocado de danças. Era soul com capoeira, movimentos olímpicos, mímica, acrobacia, jazz e afro, dança robótica.

Folha - O famoso cabelão começou a crescer quando?
Triunfo -
É que em Triunfo, tempo de Roberto Carlos e Beatles, eu era doido para deixar meu cabelo crescer. Meus pais não deixavam. Quando saí, deixar o cabelo crescer foi a primeira coisa que fiz. Era para mim como a liberdade. Deixei crescer, na época chamava pigmalião, com um rabo atrás, muito gozado. Fiz 18 anos e fui para o Exército. Fiquei no excesso de contingente, nem servi, mas os caras cortaram meu cabelo, me deixaram careca. Com raiva, nunca mais cortei desde 73. Acho que sou o único black power da época que permaneceu até hoje.
A partir do final de 70, começou a entrar a discothèque, que quebrou muito o movimento. Vieram novas tendências, como new wave e rap. Em 83 achei que já estávamos capacitados a sair para a rua, como acontecia em Nova York. Foi o primeiro contato do movimento hip hop com a rua no Brasil. Fomos primeiro para a frente do Teatro Municipal, do Mappin. Saiu muito na imprensa, e em 84 já havia muita gente dançando. Foi quando parei, com estafa e esgotamento físico, porque dançava muito e me alimentava pouco. Em 86 já havia um movimento bom na estação São Bento, foi quando chegou Thaíde e se formaram as gangues. A partir daí começou o verdadeiro hip hop, com os quatro elementos.
No início dos anos 90, vi como estava falho o lado social do movimento. Foi quando começou a grande fase do hip hop no Brasil, que era fazer valer o que a Zulu Nation plantava: trocar a violência pela paz e pela arte. Os Racionais MC's começaram a fazer palestras nas escolas, na época de Luiza Erundina. Fui para Diadema, e a prefeitura da época, do PT, deu condição para trabalharmos.

Folha - Há uma relação entre a esquerda e o hip hop?
Triunfo -
Há, sim, mas já cheguei a uma nova conclusão agora. Sou de esquerda, pensava que deveria trabalhar só ali, mas o hip hop tem que ser independente. Se um outro governo precisar de nós, podemos trabalhar, contanto que não tenhamos que subir no palco para pedir voto para ninguém ou para dar crédito a eles. Se o crédito acontecer, que seja pelo trabalho feito. Uma das melhores coisas que fiz com hip hop foi na cidade de Barueri, que é PFL, o partido que mais detesto, do ACM.

Folha - Como você avalia a atuação dos Racionais no movimento?
Triunfo -
Nos anos 90, com os Racionais, o movimento tomou uma conotação mais política, mais voltada para os grandes problemas da periferia. Respeito muito o trabalho deles. Claro que também há falhas entre os grupos maiores, muitos falam muito em preconceito, mas ainda têm preconceito de homem usar brinco, machismo. Mas a posição política, de denúncia, ajuda demais.

Folha - O que acha das críticas de que o rap incitaria à violência?
Triunfo -
Isso é uma faca de dois gumes. A violência é uma realidade que existe na periferia. Quem já não viu caminhão do IML saindo lotado de cara de pés juntos lá da favela? Quem já viu moleque pequenininho chegar em casa gritando porque na rua está fogo cruzado? É realidade. Aí me passam filme de "Rambo", aquilo pode acontecer numa boa e ninguém fala nada? Só odeiam violência quando é falada por pessoal da periferia. Será que não plantaram a violência na periferia, roubando dinheiro dos cofres públicos e desviando INPS para ilhas não sei quais? Esse dinheiro aí seria investimento em saneamento básico, educação. Não, com direito de estudar e bem guardados em seus muros, eles plantaram o vírus do mal e da violência na periferia.

Folha - Carlinhos Brown diz que a música é um lugar de alegria, que não devia conter esses assuntos.
Triunfo -
Não concordo com ele. Ele está num momento bom, tudo para ele brilha. Só que ele não fala que em Salvador há favela com morador pisando dentro do esgoto, enquanto aquele ACM põe refletores na praia. Não fala que a maioria da população é negra e que quem tem os grandes empregos lá são os brancos. Há um baita racismo na cidade de Salvador, e ele não fala disso.
Carlinhos Brown faz um trabalho legal com a molecada de lá, mas não posso deixar meu filho muito romântico e certinho demais. O que adianta eu ensinar música para um moleque meu, se o da classe média ou alta vai conseguir muito mais oportunidades? Como o meu vai sobreviver com os malandros, a falta de comida, sem ter acesso a jornalista?
Tenho que falar para Carlinhos Brown que ele precisa passar a consciência social também, não é só ensinar a dança e a música. Senão podemos formar um grande músico que toca para caramba, mas na hora que abre a boca parece um esgoto, só fala besteira.
E Pelé? Estou vendo uma reportagem dele com a molecada do Santos, primeiro ele diz assim: "Não vamos denegrir nossa imagem". Como um cara negro vai falar essa palavra? Quer dizer que se enegrecer não presta? Aí logo depois diz: "Aquele que não for bom aluno na escola e não estiver bem em casa com o pai e a mãe não vai fazer parte do trabalho". Poxa, aquele moleque que ia roubar é o que mais precisa da ajuda dele no futebol, e é o primeiro a ser jogado fora? Quem é o pobre que não tem problema em casa? Como você pode ir bem na escola se está com fome, se sua mãe levou um pisa de seu pai que chegou bêbado em casa? Ele não entende nada do social, pelo amor de Deus, volta para jogar bola.


Texto Anterior: Programação de TV
Próximo Texto: Nelson Triunfo: "Funk carioca só destruiu o povo mais ainda"
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.