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DRAUZIO VARELLA
O tratamento do câncer no século 21
Se um dia você ler que foi
achada a cura do câncer, não
leve a sério. O que chamamos de
câncer é um conjunto de mais de
cem doenças distintas, que apresentam em comum apenas o fato
de terem em sua origem a transformação de uma célula normal
em maligna. Câncer de ovário e
leucemia, por exemplo, são duas
patologias com menos semelhanças do que insuficiência renal e
insuficiência respiratória.
Por causa dessa diversidade
biológica, têm sido lentos e desiguais os avanços na cancerologia.
Em 30 anos como especialista na
área, tive o privilégio de assistir a
verdadeiras revoluções no tratamento de alguns tumores e o pesar de enfrentar ainda hoje a frustração de fracassar em outros casos, como no início da profissão.
O tratamento dos tumores malignos começou com a cirurgia
-provavelmente muito antes
dos egípcios. No início do século
20, a descoberta dos raios X abriu
caminho para a destruição de tumores pela radioterapia. Na década de 1940, as pesquisas secretas do Exército americano para
utilização da mostarda nitrogenada como gás de guerra conduziram ao nascimento da quimioterapia. Com ela, estava inaugurada a era moderna do tratamento do câncer disseminado.
O tratamento atual do câncer
de mama, por exemplo, ilustra a
evolução do papel da cirurgia, da
radioterapia e da quimioterapia
nas últimas décadas. Há 30 anos,
quando comecei a trabalhar no
Hospital do Câncer de São Paulo,
todas as mulheres com tumores
malignos no seio eram obrigatoriamente submetidas à mastectomia radical, segundo a técnica de
Halsted. Nesse procedimento, o
cirurgião retirava a mama inteira junto com o músculo peitoral
situado sob ela e esvaziava o conteúdo da axila para retirar os linfonodos (gânglios) aí localizados.
Depois, encaminhava a doente
para receber radioterapia na região operada, na axila e na fossa
supraclavicular do mesmo lado,
no intuito de eliminar qualquer
foco de células malignas residuais
nos linfonodos da região.
A consequência mais triste dessa radicalidade bem-intencionada era a mutilação das mulheres.
A retirada dos músculos da parede torácica deixava visível sob a
pele a silhueta do gradeado costal; o esvaziamento do conteúdo
axilar seguido de radioterapia
provocava inchaço persistente e
muitas vezes irreversível do braço
todo. Cheguei a ver doentes com o
braço do lado operado medindo o
triplo do diâmetro do outro.
Hoje, mesmo doentes com tumores grandes podem ser previamente tratadas com quimioterapia para diminuí-los e, depois,
submetidas a cirurgias conservadoras que preservam a maior
parte do seio, acompanhadas da
retirada de um único linfonodo
da axila para estudo. Avanços
nas técnicas de radioterapia permitem irradiar essas mulheres
com desconforto mínimo e sem
sequelas definitivas. A descoberta
de drogas quimioterápicas e de
tratamentos hormonais cada vez
mais eficazes, de indicação bem
definida em ensaios clínicos internacionais, multicêntricos, com
milhares de pacientes participantes, conduziu a índices de cura
com os quais não podíamos sonhar no passado.
Ao lado desses avanços, no entanto, existem outros tipos de
câncer que curamos tão pouco
quanto nos anos 1970: câncer de
pâncreas e de pulmão, por exemplo. Em 1970, curávamos apenas
10% dos casos de câncer de pulmão, hoje conseguimos curar 13%
ou 14% nos melhores centros.
Nossos fracassos e sucessos terapêuticos, no entanto, estão muito
aquém do enorme contingente de
informações científicas recolhidas
nos laboratórios de pesquisa espalhados pelo mundo, mas especialmente concentrados nos Estados Unidos nas últimas décadas
de revolução do conhecimento
biológico. Os genes e os caminhos
percorridos pelos sinais bioquímicos que chegam até eles no interior das células malignas estão
sendo esmiuçados para servirem
de alvo para medicamentos capazes de desmontar a maquinaria
responsável pela multiplicação
celular desenfreada que diferencia os tecidos malignos dos normais.
Nos últimos 20 anos, houve
identificação de um número incrível de moléculas cruciais para
que a transformação maligna
aconteça e para que as células
transformadas sobrevivam, cresçam e migrem para órgãos distantes daquele que lhes deu origem. Outras foram identificadas
como responsáveis pela proliferação dos vasos sanguíneos necessários para a irrigação do tumor e
de suas ramificações.
Através de métodos analíticos
complexos, é possível desenhar a
configuração espacial dos átomos
que formam essas moléculas e
descobrir que porções delas são
essenciais para o exercício de sua
função. Essas áreas-alvo podem
ser atacadas por compostos desenhados especificamente para
neutralizá-las e, assim, inativar-lhes a função.
Diferentemente da quimioterapia tradicional, que destrói tumores malignos, mas ataca também
as células normais que se encontrarem em processo de divisão
(como os glóbulos vermelhos, os
brancos e a raiz do cabelo), as
drogas desenvolvidas por esse tipo
de tecnologia têm a vantagem da
especificidade, isto é, de reagir exclusivamente contra moléculas-alvo situadas nas células malignas.
Os primeiros produtos obtidos
por técnicas de "design molecular" foram lançados recentemente no comércio. Obtida pela mesma tecnologia, existe pelo menos
mais meia dúzia de medicamentos ativos contra alguns tipos de
câncer em fase final de experimentação clínica. Entre eles, estão drogas que agem contra tumores malignos de grande prevalência na população, como câncer
de pulmão e de intestino, por
exemplo. É o início de uma nova
era que em dez a 20 anos revolucionarão o tratamento do câncer
passo a passo.
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