São Paulo, sábado, 29 de julho de 2000


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Estação Carandiru 2 - Presos escrevem memórias do cárcere

Caio Guatelli/Folha Imagem
Ronny Clay Chaves, 24, condenado a 22 anos por envolvimento em homicídio, um dos 300 detentos do Carandiru que estão em concurso literário do presídio



Concurso vai reunir em livro 15 relatos biográficos de detentos do maior presídio do país, a Casa de Detenção de São Paulo


CASSIANO ELEK MACHADO
DA REPORTAGEM LOCAL

Sentado em uma poltrona furada em uma sala do pavilhão 4 do Carandiru, o detento Carlos Eduardo Pereira resume seus 28 anos de idade. "Eu queria ser cardiologista. Virei ladrão."
Com voz tímida, olhos emoldurados por olheiras escuras, o morador da cela 210-A explica que deve ser libertado em seis meses e que desistiu mesmo dos corações. Ele quer virar um escritor.
Eduardo já começou a empreitada. No dia 7 de julho, enquanto mais de 15 mil pessoas participavam em todo o país do movimento "Basta! Eu Quero Paz", ele resolveu escrever uma das histórias mais incríveis que já conheceu. A da sua vida. Dos passeios de skate aos assaltos à mão armada.
Mais de 300 companheiros dele de cadeia já fizeram o mesmo este mês. São os participantes do primeiro grande concurso literário feito em um presídio brasileiro. O projeto "Jornada Biográfica, Letras de Liberdade", promovido pela Casa de Detenção de São Paulo em parceria com a editora WB, vai selecionar 15 desses relatos biográficos em um livro, a ser lançado em novembro.
O concurso começou em junho, um ano depois do lançamento de "Estação Carandiru", em que o médico Drauzio Varella descreve o cotidiano do maior presídio do país. Agora é a vez de os personagens escreverem.
Amanhã terminam as inscrições. O último lote de "memórias do cárcere" chega na segunda-feira à editora, que define a lista dos escolhidos em 15 dias.
Os eleitos ganharão 30 exemplares do livro, ainda sem nome definido, e ficarão com 10% do valor das vendas. Três dos autores também serão escolhidos para algo com que sonham os 7.200 detentos do Carandiru. Vão poder cruzar o portão verde da Casa de Detenção. Eles participarão de um noite de autógrafos a ser realizada na livraria Saraiva do shopping Center Norte.
Nenhuma outra idéia é maior do que essa dentro da cela 426-E, do pavilhão 7. É lá que vive Márcio Marcelo do Nascimento Sena, 30, apelido Professor.
Condenado a 19 anos por tráfico e tentativa de homicídio, chegou ao Carandiru há seis anos com a quarta série concluída. Dentro do presídio, estudou até a oitava. Hoje faz o colegial e dá aulas de alfabetização para os colegas.
Como o material didático que conseguiu para ensinar os detentos era infantil, Marcelo começou a criar as suas histórias. Foi assim que sua prosa ganhou gume. Em "Lembranças ao Vento", que enviou ao concurso, conta não a sua, mas a história de um colega. "Jesus em pé, com o rosto encostado na parede, com os olhos perdidos dando um ar de enlouquecido, em estado de choque, devido ao quase linchamento... O "cameraman" gravava a imagem pensando na manchete: "Jesus cai em tentação e peca'", escreve.
"É uma história sobre as armadilhas da vida", explica Marcelo. "Jesus foi acusado de estuprar a filha. Como o IML estava em greve, não foi feita a perícia. Ele foi para a delegacia e estuprado na primeira noite. Pegou o HIV. Morreu pouco depois de ter sido solto, quando fizeram o exame e viram que a menina não havia sido tocada por ninguém."
"É um mundo muito, muito feio", diz Wagner Veneziani Costa, diretor-presidente da editora WB, que vai publicar o livro.
Segundo ele, o projeto nasceu dentro do Carandiru. Um dos dirigentes da instituição procurou a editora dizendo que muitos presos "não se sentiam à vontade" com o modo como Drauzio Varella tinha contado a história deles em "Estação Carandiru".
"Não era uma crítica ao Drauzio. Mas os presos queriam a "nossa versão da história'", conta o gerente de comunicação da editora, Pedro Zarur Almeida.
Zarur esperava que o chamado massacre do Carandiru, a morte de 111 detentos em 1992, fosse um dos temas que mais aparecessem no concurso. Mas poucas redações trataram do tema. Dos 300 textos que chegaram até a editora, a maioria é de autobiografias.
"Estamos tirando água de pedra", resume Ronny Clay Chaves, 24, condenado a 22 anos por envolvimento em homicídio. "Queremos mostrar que existe muito mito cercando a Detenção."


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