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ANÁLISE
Evento promove o atordoamento do teatro
SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA
Rio Preto confirmou o que
já apontava o Festival de Curitiba: o centro das atenções no
teatro é cada vez mais o ator, enquanto ponto de convergência de
um trabalho de equipe.
"Hysteria" e "Os Camaradas",
consagrados em Curitiba, voltaram em Rio Preto a seduzir a platéia, sem precisar de atores famosos nem de encenadores consagrados. Mais ainda, os organizadores do festival preferiram mostrar enquanto esboços as grandes
estréias em perspectiva. A platéia
pôde notar que há cada vez menos dramaturgos, que entregam
um texto pronto, e mais dramaturgistas, que escrevem sob medida para o processo a que assistem,
não raro acumulando a função de
encenadores, lapidando o texto
bruto fornecido pelos atores.
É o caso de Aderbal Freire-Filho, que, junto a Luis Melo e seus
alunos do ACT (Ateliê de Criação
Teatral), vem construindo em
"Cãocoisa..." espetáculo ainda
descosido, mas que promete. Passear com seu cachorro pela cidade
se torna envolvente metáfora sobre a condição humana, pleno de
um humor melancólico próximo
do Homem-Catraca de Laerte.
Fernando Bonassi, que já desenvolveu semelhante dramaturgia
participativa em "Apocalipse
1,11", fez de Woyzeck, soldado
alemão do século 19, um brasileiro de hoje, a partir de um fascinante processo de canibalização
do texto de Büchner levado pelo
arrojo da encenadora Cibele Forjaz. Os 22 fragmentos da peça inacabada foram apresentados segundo uma sequência sorteada:
façanha só para quem conta com
um elenco privilegiado, que une
atores da escola Piolim a Matheus
Nachtergaele, trágico e cômico,
em outra inesquecível atuação.
Quanto ao front de "Os Sertões", observa-se um salto de maturidade dos atores do Oficina,
cada vez mais aptos a se apropriarem da prolixa prosódia de Euclydes e irem além do ritual. Sylvia
Prado, por exemplo, incorporou
santa Luzia com uma arrepiante
simplicidade. Ver José Celso Martinez Corrêa enquanto ator, no
entanto, parecendo improvisar
para a platéia daquela noite um
texto clássico, segue sendo uma
experiência incomparável.
A mescla do texto consagrado e
do improviso é também o mote
da Cia. Pop de Teatro Clássico, do
Rio. Em "Auto do Novilho Furtado", Mouhamed Harfouch se revela um digno cavaleiro do imperador Ariano Suassuna, homenageado em ciclo, ao lado de Plínio
Marcos e Antonin Artaud.
Artaud esteve espalhado como
uma peste pela cidade, não só em
efígie mas enquanto ponto de
partida para insolentes reinvenções do teatro. Em "Once", espetáculo deslumbrante como a chegada do circo à cidade do interior,
a trupe russa Derevo desarticulou
o solene Nosferatu ao inseri-lo como vilão de pantomima, revitalização do universo de Batiste de
"Les Enfants du Paradis".
Artaud pôde também encontrar
seus duplos: encarnado pelo impecável Stephane Brodt, seus apelos em "Cartas de Rodez" ecoaram na comovente pregação de
Arthur Bispo do Rosário em "Bispo", representado com a maior
dignidade por João Miguel; e no
Qorpo Santo resgatado enquanto
arquiteto do caos em "Banqete".
Mas a grande provocação foi a
de Jan Fabre, em sua estréia brasileira. A metáfora de seu segundo
espetáculo exibido, "My Movements Are Alone like Streetdogs",
a do artista enquanto cachorro vira-lata, insolente, maltratado e livre, acabou alinhavando o festival. É ele o "homem-cão" do ACT,
o Woyzeck de quatro diante do
médico que o exibe à platéia, o
parceiro dos loucos do tarô. Só
não esteve presente, infelizmente,
no bem-comportado "Hamlet"
de Francisco Medeiros, cujo elenco desigual só declamou o texto.
Esse "Hamlet" fica bem atrás da
matilha, por não ousar virar as latas da obra-prima no "desobramento" do teatro literário, como
queria Artaud, para reciclá-lo sem
garantias nem receitas. Cruzando
trilhas pelo faro, roendo cinicamente os ossos do risco-Brasil,
atores andam às soltas pelo país.
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