São Paulo, segunda-feira, 29 de julho de 2002

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ANÁLISE

Evento promove o atordoamento do teatro

SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Rio Preto confirmou o que já apontava o Festival de Curitiba: o centro das atenções no teatro é cada vez mais o ator, enquanto ponto de convergência de um trabalho de equipe.
"Hysteria" e "Os Camaradas", consagrados em Curitiba, voltaram em Rio Preto a seduzir a platéia, sem precisar de atores famosos nem de encenadores consagrados. Mais ainda, os organizadores do festival preferiram mostrar enquanto esboços as grandes estréias em perspectiva. A platéia pôde notar que há cada vez menos dramaturgos, que entregam um texto pronto, e mais dramaturgistas, que escrevem sob medida para o processo a que assistem, não raro acumulando a função de encenadores, lapidando o texto bruto fornecido pelos atores.
É o caso de Aderbal Freire-Filho, que, junto a Luis Melo e seus alunos do ACT (Ateliê de Criação Teatral), vem construindo em "Cãocoisa..." espetáculo ainda descosido, mas que promete. Passear com seu cachorro pela cidade se torna envolvente metáfora sobre a condição humana, pleno de um humor melancólico próximo do Homem-Catraca de Laerte.
Fernando Bonassi, que já desenvolveu semelhante dramaturgia participativa em "Apocalipse 1,11", fez de Woyzeck, soldado alemão do século 19, um brasileiro de hoje, a partir de um fascinante processo de canibalização do texto de Büchner levado pelo arrojo da encenadora Cibele Forjaz. Os 22 fragmentos da peça inacabada foram apresentados segundo uma sequência sorteada: façanha só para quem conta com um elenco privilegiado, que une atores da escola Piolim a Matheus Nachtergaele, trágico e cômico, em outra inesquecível atuação.
Quanto ao front de "Os Sertões", observa-se um salto de maturidade dos atores do Oficina, cada vez mais aptos a se apropriarem da prolixa prosódia de Euclydes e irem além do ritual. Sylvia Prado, por exemplo, incorporou santa Luzia com uma arrepiante simplicidade. Ver José Celso Martinez Corrêa enquanto ator, no entanto, parecendo improvisar para a platéia daquela noite um texto clássico, segue sendo uma experiência incomparável.
A mescla do texto consagrado e do improviso é também o mote da Cia. Pop de Teatro Clássico, do Rio. Em "Auto do Novilho Furtado", Mouhamed Harfouch se revela um digno cavaleiro do imperador Ariano Suassuna, homenageado em ciclo, ao lado de Plínio Marcos e Antonin Artaud.
Artaud esteve espalhado como uma peste pela cidade, não só em efígie mas enquanto ponto de partida para insolentes reinvenções do teatro. Em "Once", espetáculo deslumbrante como a chegada do circo à cidade do interior, a trupe russa Derevo desarticulou o solene Nosferatu ao inseri-lo como vilão de pantomima, revitalização do universo de Batiste de "Les Enfants du Paradis".
Artaud pôde também encontrar seus duplos: encarnado pelo impecável Stephane Brodt, seus apelos em "Cartas de Rodez" ecoaram na comovente pregação de Arthur Bispo do Rosário em "Bispo", representado com a maior dignidade por João Miguel; e no Qorpo Santo resgatado enquanto arquiteto do caos em "Banqete".
Mas a grande provocação foi a de Jan Fabre, em sua estréia brasileira. A metáfora de seu segundo espetáculo exibido, "My Movements Are Alone like Streetdogs", a do artista enquanto cachorro vira-lata, insolente, maltratado e livre, acabou alinhavando o festival. É ele o "homem-cão" do ACT, o Woyzeck de quatro diante do médico que o exibe à platéia, o parceiro dos loucos do tarô. Só não esteve presente, infelizmente, no bem-comportado "Hamlet" de Francisco Medeiros, cujo elenco desigual só declamou o texto.
Esse "Hamlet" fica bem atrás da matilha, por não ousar virar as latas da obra-prima no "desobramento" do teatro literário, como queria Artaud, para reciclá-lo sem garantias nem receitas. Cruzando trilhas pelo faro, roendo cinicamente os ossos do risco-Brasil, atores andam às soltas pelo país.



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