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São Paulo, terça-feira, 29 de julho de 2003

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"O ACORDE DE TRISTÃO"

Autor cria um fantástico exílio para sua criatividade

MÁRCIO SELIGMAN-SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A literatura tem inúmeras funções, mas quando o autor é ele mesmo um professor de literatura deve-se acrescentar mais uma, um tanto paradoxal: a de esquecer da sua profissão! Hans-Ulrich Treichel encantou o público alemão com o livro "O Acorde de Tristão", que agora podemos ler em português.
Treichel nasceu em 1952 em Versmold, na Vestefália, local que ele denomina com um misto de carinho e auto-ironia de uma "terra geograficamente nula". É este ponto zero, além de sua própria formação de germanista e de sua atividade como libretista de ninguém menos que Hans Werner Henze, seu amigo e um dos maiores compositores alemães do século 20, que permite que leiamos seu "acorde" como um texto carregado de marcas autobiográficas. E haja auto-ironia!
O protagonista, Georg Zimmer, além de germanista é também escritor, como Treichel, e acaba se transformando no autor de "hinos" do músico Bergmann, uma paródia saborosa de Henze. Egocêntrico é um termo muito aquém daquilo que a fixação exclusiva na sua carreira e fama significa.
Por um acaso feliz, o jovem Zimmer passa de escritor sem perspectivas e desempregado para o papel de protegido de Bergmann, acompanhando-o em seu retiro de verão em uma idílica casa nas ilhas Hébridas (na Escócia), em uma "première" em Nova York e na casa do músico na Sicília. Ele tem por tarefa rever, como não poderia deixar de ser, a autobiografia do músico.
A ironia se transforma em uma metralhadora giratória neste delicioso romance: não apenas o alemão tímido e atrapalhado que o autor desenha na figura de Zimmer é atingido por ela, mas também a cultura norte-americana (infantil e incompreensível para Zimmer e Bergmann), a própria literatura (Zimmer, em crise de inspiração, decide escrever sobre sua incapacidade de escrever...), o mundo competitivo dos músicos, a universidade etc.. Nada fica em pé. Isso em meio a uma narrativa que flui fácil e mistura elementos dos mais sofisticados da alta cultura, passando por belas mulheres e pelos universos psicológicos do germanista e do músico.
Um dos aspectos mais impressionantes do livro é justamente a sua capacidade de unir a sofisticação à leveza. Zimmer está também às voltas com o seu doutorado sobre o tema do esquecimento, e o esquecimento é justamente um personagem central no livro.
Já no início do romance ele é esquecido pelo motorista ao desembarcar na Escócia. Uma das passagens mais belas do livro é quando Zimmer se lembra de si em Emsfelde, sua pequena cidade natal, deitado à beira do rio Ems, vendo imaginariamente diante de seus olhos toda sua vida se afogando no rio: menos o seu cachorrinho.
Este rio é de certo modo sobreposto ao rio Lete da mitologia grega, o rio do esquecimento que os mortos cruzam ao entrar e ao sair dos Campos Elísios. Este rio corta poeticamente o livro em vários momentos.
Existe nele tanto o esquecimento bem-aventurado (advindo, por exemplo, do báquico vinho), quanto o terrível esquecimento das marcas da vida. Zimmer tem pesadelos com uma enorme mão apagando o seu nome da enciclopédia "Grove".
Já Bergmann quer apagar o nome de Nerlinger, o "segundo melhor músico alemão" (depois dele mesmo, claro), do índice onomástico de sua autobiografia (memória, afinal, também é esquecimento!).
Treichel esquece os trejeitos de autor acadêmico ao escrever seus romances. Ele conseguiu criar um fantástico exílio para sua criatividade.


O Acorde de Tristão   
Autor: Hans-Ulrich Treichel
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 28,50 (160 págs.)

Márcio Seligman-Silva é professor de teoria literária na Unicamp, autor de, entre outros, "Ler o Livro do Mundo: Walter Benjamin, Romantismo e Crítica Poética" (Iluminuras) e organizador de "História, Memória, Literatura: O Testemunho na Era das Catástrofes" (Editora da Unicamp).



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