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"O ACORDE DE TRISTÃO"
Autor cria um fantástico exílio para sua criatividade
MÁRCIO SELIGMAN-SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA
A literatura tem inúmeras funções, mas quando o
autor é ele mesmo um professor
de literatura deve-se acrescentar
mais uma, um tanto paradoxal: a
de esquecer da sua profissão!
Hans-Ulrich Treichel encantou o
público alemão com o livro "O
Acorde de Tristão", que agora podemos ler em português.
Treichel nasceu em 1952 em
Versmold, na Vestefália, local que
ele denomina com um misto de
carinho e auto-ironia de uma
"terra geograficamente nula". É
este ponto zero, além de sua própria formação de germanista e de
sua atividade como libretista de
ninguém menos que Hans Werner Henze, seu amigo e um dos
maiores compositores alemães do
século 20, que permite que leiamos seu "acorde" como um texto
carregado de marcas autobiográficas. E haja auto-ironia!
O protagonista, Georg Zimmer,
além de germanista é também escritor, como Treichel, e acaba se
transformando no autor de "hinos" do músico Bergmann, uma
paródia saborosa de Henze. Egocêntrico é um termo muito
aquém daquilo que a fixação exclusiva na sua carreira e fama significa.
Por um acaso feliz, o jovem
Zimmer passa de escritor sem
perspectivas e desempregado para o papel de protegido de Bergmann, acompanhando-o em seu
retiro de verão em uma idílica casa nas ilhas Hébridas (na Escócia),
em uma "première" em Nova
York e na casa do músico na Sicília. Ele tem por tarefa rever, como
não poderia deixar de ser, a autobiografia do músico.
A ironia se transforma em uma
metralhadora giratória neste delicioso romance: não apenas o alemão tímido e atrapalhado que o
autor desenha na figura de Zimmer é atingido por ela, mas também a cultura norte-americana
(infantil e incompreensível para
Zimmer e Bergmann), a própria
literatura (Zimmer, em crise de
inspiração, decide escrever sobre
sua incapacidade de escrever...), o
mundo competitivo dos músicos,
a universidade etc.. Nada fica em
pé. Isso em meio a uma narrativa
que flui fácil e mistura elementos
dos mais sofisticados da alta cultura, passando por belas mulheres e pelos universos psicológicos
do germanista e do músico.
Um dos aspectos mais impressionantes do livro é justamente a
sua capacidade de unir a sofisticação à leveza. Zimmer está também às voltas com o seu doutorado sobre o tema do esquecimento,
e o esquecimento é justamente
um personagem central no livro.
Já no início do romance ele é esquecido pelo motorista ao desembarcar na Escócia. Uma das passagens mais belas do livro é quando Zimmer se lembra de si em
Emsfelde, sua pequena cidade natal, deitado à beira do rio Ems,
vendo imaginariamente diante de
seus olhos toda sua vida se afogando no rio: menos o seu cachorrinho.
Este rio é de certo modo sobreposto ao rio Lete da mitologia grega, o rio do esquecimento que os
mortos cruzam ao entrar e ao sair
dos Campos Elísios. Este rio corta
poeticamente o livro em vários
momentos.
Existe nele tanto o esquecimento bem-aventurado (advindo, por
exemplo, do báquico vinho),
quanto o terrível esquecimento
das marcas da vida. Zimmer tem
pesadelos com uma enorme mão
apagando o seu nome da enciclopédia "Grove".
Já Bergmann quer apagar o nome de Nerlinger, o "segundo melhor músico alemão" (depois dele
mesmo, claro), do índice onomástico de sua autobiografia (memória, afinal, também é esquecimento!).
Treichel esquece os trejeitos de
autor acadêmico ao escrever seus
romances. Ele conseguiu criar um
fantástico exílio para sua criatividade.
O Acorde de Tristão
Autor: Hans-Ulrich Treichel
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 28,50 (160 págs.)
Márcio Seligman-Silva é professor de
teoria literária na Unicamp, autor de, entre outros, "Ler o Livro do Mundo: Walter
Benjamin, Romantismo e Crítica Poética"
(Iluminuras) e organizador de "História,
Memória, Literatura: O Testemunho na
Era das Catástrofes" (Editora da Unicamp).
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