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CINEMA
Documentário "Nelson Freire" chega ao mercado com inédita tecla para misturar as seqüências aleatoriamente
DVD entrega ao acaso a ordem do filme
SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL
Como se fossem cartas nas
mãos de um jogador, as seqüências de "Nelson Freire" podem ser
infinitamente embaralhadas na
versão em DVD do documentário
de João Moreira Salles sobre o
pianista brasileiro, que chega às
lojas na próxima semana.
"Misturar" o filme é o item
acrescentado às opções do menu
de navegação. Há somente uma
regra fixa na brincadeira. O DVD
está programado para que o primeiro capítulo seja sempre o que
exibe os créditos de abertura (tal e
qual aparecem na "versão do diretor") e para que o epílogo traga
as assinaturas de encerramento.
No recheio entre o começo e o
fim, a combinação das 30 demais
seqüências do filme torna-se inteiramente aleatória.
"É a primeira vez que um cliente
nos pede esse recurso", diz Adriano Canella, que coordenou a produção do DVD na Videolar, empresa que desenvolveu este e 1.100
outros títulos. O diretor do filme
está certo de que "é a primeira vez
que tal função é incorporada a um
DVD".
Ineditismo
Mais do que o ineditismo da iniciativa, chama a atenção que ela
tenha sido concretizada num filme do gênero documentário, em
que o rigor da narrativa está, em
geral, diretamente relacionado ao
esforço de afastar toda possibilidade de provocar no espectador
incompreensões e interpretações
equívocas sobre os "personagens", retratados sem a proteção
de um papel fictício.
Moreira Salles é tão adepto deste compromisso que escolheu traçar um perfil biográfico de Nelson
Freire apoiado na menos cinematográfica das características -o
recato-, porém a que prevalece
na personalidade do pianista.
Por que então abdicar das próprias escolhas no encadeamento
das cenas filmadas e deixar com o
espectador a possibilidade de ver
outro filme, distinto daquele que
o diretor montou?
Prova
O cineasta responde com outra
indagação: "Por que não colocar a
criação à prova?". Mas, antes, delineia o percurso do risco. "A gente aprende que o ato representa a
morte da potência. O filme acabado seria o fim dos filmes possíveis.
A função aleatória contraria isso."
Misturar, nessa perspectiva, é
mais do que testar modificações
numa única criação. É dar chance
para que outras criações tomem
forma, chamadas à existência não
pela interatividade do autor com
seu público, mas pelo acaso.
Razão e acaso
"Tenho uma grande fé na razão,
o acaso sempre foi o inimigo,
mas, como é típico nestes casos,
acho o bandido fascinante", diz
Moreira Salles. O fascínio do acaso, para o diretor, resulta de sua
tradução como a possibilidade de
um encontro, o que, no fim das
contas, ele imagina estar oferecendo ao espectador com a novidade de seu DVD, sem isentá-lo
de, às vezes, sair mais prejudicado
do que favorecido pelo resultado.
"Existem os bons encontros e os
maus encontros. Os encontros esperados e os inesperados. Se o espectador tiver paciência, ele poderá ter a sorte de se ver diante de
um encontro bom e inesperado,
ou seja, de um feliz acaso."
"Nelson Freire" foi lançado nos
cinemas em abril do ano passado
e registrou público de 70 mil pessoas, número expressivo para um
documentário. Neste ano, o Brasil
viu seu maior lançamento no gênero, "Pelé Eterno", de Anibal
Massaini, sobre o ídolo do futebol, acumula até aqui 222 mil espectadores.
Constrangimentos
A inovação da montagem aleatória é conseqüência de uma idéia
do cineasta anterior ao filme.
"Desde que comecei a pensar no
documentário do Nelson Freire,
tive vontade de livrar-me de certos constrangimentos: primeiro,
o da obrigação de informar. Depois, o de construir seqüências
que obedecessem a uma lógica de
causa e conseqüência -o que
vem antes só pode vir antes, o que
vem depois só pode vir depois",
diz Moreira Salles.
A obrigação de informar e a lógica da causa e conseqüência imperam no documentário anterior
do cineasta, "Notícias de uma
Guerra Particular" (1999), co-dirigido com Katia Lund, sobre o
qual ele tem dúvidas se seria interessante ou não aplicar o recurso
da montagem aleatória. "Não sei.
As vantagens seriam tão grandes
quanto as desvantagens."
Imposição do tempo
Em outros casos, misturar as seqüências seria desarticular por
completo o filme, como em "Babilônia 2000", documentário de
Eduardo Coutinho produzido pela Videofilmes dos Moreira Salles,
que tem "a imposição do tempo",
como diz o diretor. Na favela carioca, Coutinho filma as horas anteriores ao Réveillon de 2000.
O mesmo não se aplica a "Edifício Master", que também traz a
dupla Coutinho na direção e Moreira Salles na produção e que o
segundo acharia "fascinante ver
em outra ordem". Como ainda
não teve sua versão em DVD lançada, é possível que "Edifício
Master" também incorpore o recurso da mistura aleatória.
Extras
Em formato duplo, o DVD de
"Nelson Freire" traz cem minutos
de material extra, incluindo um
concerto inédito do pianista. Embora acredite que o material vá
agradar "às pessoas que gostaram
de determinada música ou de determinado concerto e gostariam
de ouvir mais", Moreira Salles diz
que a vinheta "Seqüências musicais" do menu "não diz tudo" sobre suas cenas.
"Talvez o momento que melhor
revele a profunda relação que une
[a pianista argentina] Martha Argerich a Nelson Freire aconteça
numa seqüência em que os dois
ouvem um jovem pianista tocar.
Eles não trocam uma só palavra.
Apenas passam o cigarro de um
para o outro. Tudo está dito ali."
Até mesmo que o silêncio é o feliz acaso de um filme musical.
NELSON FREIRE. Produção: Brasil, 2004.
Direção: João Moreira Salles. Com:
Nelson Freire, Martha Argerich.
Lançamento: Videofilmes. Quanto: R$ 70
(em média, a partir da semana que vem).
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