São Paulo, sexta-feira, 29 de julho de 2005 |
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CARLOS HEITOR CONY Espingarda para matar búfalo na curva
O táxi estava parado no
ponto da rua do Catete. Era uma vez um hipopótamo. Ao levantar da cama e ir escovar os dentes, descobriu que tinha se transformado em pulga. "Que é que eu vou dizer lá no trabalho?", pensou o hipopótamo, enquanto procurava escovar os minúsculos dentes com a sua enorme escova habitual. "Se eu telefonar para o chefe, ele não vai acreditar e pensará que estou evitando o balanço anual da firma. Mas, se eu disser, "virei pulga durante a noite", estarei dizendo tão só a verdade." O hipopótamo decidiu fazer uma coisa que nunca havia feito: mentir. "Sim, preciso mentir. Do contrário, minha história ficará parecida com um conto de Kafka, e vão criticar meu autor, acusando-o de plágio." Posto isso, telefonou para a repartição: - Olhe, avise ao chefe que amanheci com dor no fígado. - Dor onde? - No fígado. - Pode ficar descansado. O médico da firma irá visitá-lo antes do meio-dia para atestar. O hipopótamo desligou e meditou sobre as inconveniências da mentira. "Taí, vou fazer um papelão, o médico verá que não tenho nada no fígado, nem sequer tenho fígado, sempre ouvi dizer que as pulgas não têm fígado." O hipopótamo pensava na besteira que fizera quando chegou o médico. - O senhor é que é o hipopótamo? - Não parece, mas sou eu, sim, senhor. - Onde está sentindo dor? - No fígado. - O senhor bebeu ontem à noite? - Não. Sou abstêmio. - Então abra a boca. O hipopótamo abriu a pequenina boca de pulga e pensou: "Agora é que o médico vai ver que não sou mais hipopótamo, que me transformei numa pulga sem boca. Sem boca e sem fígado". - Pode fechar. Alguma coisa passou a acontecer que o hipopótamo não mais entendia. Viu o médico tirar da maleta o bloco das receitas e escrever um poema que começava com estas palavras: "Sic te Diva potens Chypre, sic fratres Helenae lúcida siderum." - O senhor é poeta? - Não, sou humanista. Isso é um poema de Horácio dedicado a Virgilio, que estava embarcando para a Grécia. Horácio temia as emboscadas do mar, os infames escrópulos do Acroceraunia... o senhor também é humanista? - Sou um hipopótamo dentro de uma pulga. No momento, não tenho condições para ser um humanista. O médico: - Tome isso de duas em duas horas. Descanse bastante e não ouça rádio. Amanhã, estará bom. Nisso, o hipopótamo virou hipopótamo outra vez e, para seu espanto, viu o médico virar pulga. O hipopótamo pisou em cima da pulga, matando-a. Depois, tomou banho, escovou novamente os dentes e foi trabalhar. Não era um humanista. Era simplesmente um hipopótamo. Texto Anterior: Documentário: Atração desvenda cauboí pela tecnologia Próximo Texto: Panorâmica - Cinema: Espaço Unibanco realiza quarta Odisséia Índice |
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