São Paulo, sexta-feira, 29 de julho de 2005

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CARLOS HEITOR CONY

Espingarda para matar búfalo na curva

O táxi estava parado no ponto da rua do Catete.
- Leve-me depressa à igreja mais próxima!
O motorista obedeceu. Ligou o carro e o taxímetro. Foi quando teve a primeira dúvida daquela noite: a que igreja o camarada desejaria ir? Católica? Protestante? Ortodoxa russa ou maronita? Quem sabe à sinagoga? Olhou para trás e viu um búfalo. Um búfalo autêntico, sentia-lhe a morrinha de bicho.
- Desculpe, senhor búfalo, mas para qual igreja deseja ir?
- Qualquer uma, desde que seja católica romana.
Ainda bem. Havia uma igreja bem perto, se o búfalo fosse maronita muçulmano ou adventista, ele teria de dar duro para achar um templo adequado.
- Pronto. Aqui estamos!
O motorista temeu que o padre estranhasse um búfalo batendo à porta da igreja e resolveu ajudar:
- O senhor pode ficar aí, eu vou lá dentro chamar o padre.
Desceu, bateu à porta da casa paroquial. O padre veio atender.
- Tem um búfalo lá no carro que deseja entrar na igreja.
- Búfalo?
- É. Se não é búfalo, é rinoceronte ou hipopótamo.
- Tem chifres?
- Acho que tem. Não reparei bem. Mas deve ter.
- Então é búfalo. Diga que o expediente fechou. Só atendo agora pedidos de extrema-unção. Quer um Alka-Seltzer?
- O búfalo talvez não tome essas coisas.
- Não. O Alka-Seltzer não é para o búfalo, é para o senhor.
O motorista percebeu que o padre não acreditava nele e voltou para o carro.
- O padre não quer saber de búfalos na igreja!
- Então me leva para Bond Street, 45.
O motorista arrancou para o novo endereço, admirado de o búfalo ser tão resignado e cortês. Quando chegou a Bond Street, 45, viu que era um bordel famoso.
- Agora deixa que eu vou sozinho -disse-lhe o búfalo. Estava chateado com o motorista, não fora bem-sucedido com o padre, agora seria diferente, ele mesmo se anunciaria.
O motorista viu o búfalo subir com as quatro patas os degraus do bordel e bater na campainha. A madame de cabelos vermelhos veio abrir a porta:
- Há quanto tempo, meu filho! Andou sumido!
- O trabalho -disse o búfalo. Tenho viajado muito, os tempos estão difíceis.
O motorista viu a porta do bordel fechar-se e correu para a polícia. Invadiu o gabinete do delegado:
- Doutor, tem um búfalo em Bond Street, 45!
- Um búfalo?
- É. Um búfalo! Com chifres assim. A dona deixou entrar!
O delegado coçou o queixo:
- Não é um búfalo com olhos verdes, o rabo cortado, uma cicatriz perto do pescoço?
- É.
- Então não se pode fazer nada, meu filho. Ele tem imunidades parlamentares.

 

Era uma vez um hipopótamo. Ao levantar da cama e ir escovar os dentes, descobriu que tinha se transformado em pulga.
"Que é que eu vou dizer lá no trabalho?", pensou o hipopótamo, enquanto procurava escovar os minúsculos dentes com a sua enorme escova habitual. "Se eu telefonar para o chefe, ele não vai acreditar e pensará que estou evitando o balanço anual da firma. Mas, se eu disser, "virei pulga durante a noite", estarei dizendo tão só a verdade."
O hipopótamo decidiu fazer uma coisa que nunca havia feito: mentir. "Sim, preciso mentir. Do contrário, minha história ficará parecida com um conto de Kafka, e vão criticar meu autor, acusando-o de plágio." Posto isso, telefonou para a repartição:
- Olhe, avise ao chefe que amanheci com dor no fígado.
- Dor onde?
- No fígado.
- Pode ficar descansado. O médico da firma irá visitá-lo antes do meio-dia para atestar.
O hipopótamo desligou e meditou sobre as inconveniências da mentira. "Taí, vou fazer um papelão, o médico verá que não tenho nada no fígado, nem sequer tenho fígado, sempre ouvi dizer que as pulgas não têm fígado."
O hipopótamo pensava na besteira que fizera quando chegou o médico.
- O senhor é que é o hipopótamo?
- Não parece, mas sou eu, sim, senhor.
- Onde está sentindo dor?
- No fígado.
- O senhor bebeu ontem à noite?
- Não. Sou abstêmio.
- Então abra a boca.
O hipopótamo abriu a pequenina boca de pulga e pensou: "Agora é que o médico vai ver que não sou mais hipopótamo, que me transformei numa pulga sem boca. Sem boca e sem fígado".
- Pode fechar.
Alguma coisa passou a acontecer que o hipopótamo não mais entendia. Viu o médico tirar da maleta o bloco das receitas e escrever um poema que começava com estas palavras:
"Sic te Diva potens Chypre, sic fratres Helenae lúcida siderum."
- O senhor é poeta?
- Não, sou humanista. Isso é um poema de Horácio dedicado a Virgilio, que estava embarcando para a Grécia. Horácio temia as emboscadas do mar, os infames escrópulos do Acroceraunia... o senhor também é humanista?
- Sou um hipopótamo dentro de uma pulga. No momento, não tenho condições para ser um humanista.
O médico:
- Tome isso de duas em duas horas. Descanse bastante e não ouça rádio. Amanhã, estará bom.
Nisso, o hipopótamo virou hipopótamo outra vez e, para seu espanto, viu o médico virar pulga. O hipopótamo pisou em cima da pulga, matando-a. Depois, tomou banho, escovou novamente os dentes e foi trabalhar.
Não era um humanista. Era simplesmente um hipopótamo.


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