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"Somos "piratas" em relação a regras"
Laerte diz achar o governo Lula "bastante estranho", não ter mais opinião sobre os brasileiros e passar por "autodesencanto'
Cartunista, para quem os Piratas são os personagens que mais se destacaram em sua carreira, fala ainda do longa que escreve sobre eles
DA REPORTAGEM LOCAL
Leia abaixo a continuação da
entrevista com Laerte.
(MAC)
FOLHA - Seus dois lançamentos e
sua tira na Ilustrada são relacionados ao seu passado. Você está em
uma fase revisionista?
LAERTE - É uma pergunta capciosa. Alguém que produz um
livro de memórias não está fazendo uma coisa passadista, está usando como matéria-prima
o que ele tem de experiência de
vida. Mas eu acho que é verdade
sim, não sei muito falar de projetos futuros, cheios de energia.
Tem o longa-metragem dos Piratas, por exemplo [dirigido
por Otto Guerra, que também
fez "Wood & Stock", de Angeli].
FOLHA - Qual seu envolvimento?
LAERTE - É grande, eu fiz o argumento e estou trabalhando no
roteiro com o Gilmar Rodrigues. Vamos começar a fazer
desenhos de produção, cenários, vou meter a mão.
FOLHA - E como é o roteiro?
LAERTE - É uma história inédita, na qual os Piratas ficam de
posse de um documento assinado há 400 anos entre o dono
do terreno onde fica São Paulo
e uns bandeirantes, que alugam
a área por todo esse tempo.
Quando o contrato acaba, a cidade precisa ser devolvida aos
herdeiros do dono, que são os
Piratas.
FOLHA - Os Piratas são seus personagens que mais se destacaram?
LAERTE - Sim, acho que são os
mais claros, têm mais peso. São
um achado muito bom, estavam prontos como personagens, são auto-explicativos,
misturam um fenômeno histórico que foi a pirataria com a visão romântica dela, que foi
construída depois, no século 19.
FOLHA - Você fez pesquisa para
chegar neles?
LAERTE - Sim, eu gosto do assunto. E os personagens se encaixam perfeitamente numa
história urbana brasileira crítica e atual. Todo dia vemos
exemplos de como nós, enquanto cultura, somos flexíveis
ao ponto da pirataria em relação a regras e normas. A pirataria é algo muito compreensível
para qualquer um no Brasil.
FOLHA - No editorial da revista "Piratas" nš 1, em 1990, você perguntava qual era o plano geral do povo
brasileiro. Já temos um hoje?
LAERTE - Naquele tempo eu tinha algum tipo de opinião nessa área, hoje eu tenho bem menos. Acho que é um autodesencanto, meus pontos de vista vão
se comprovando errados à medida que o tempo passa. Já fui
do Partido Comunista e tinha
um código muito nítido de concepções, mas, com o tempo, fui
perceber que eu não acreditava
ou não entendia direito o que
era aquele negócio. Fui largando coisas e minhas percepções
estão cada vez mais líquidas.
Não tenho mais uma opinião
sobre o povo brasileiro.
FOLHA - E sobre o presidente Lula,
que você conheceu na época em que
trabalhava com os sindicatos?
LAERTE - Eu acho que ele é um
cara legal. Não sei se é um bom
presidente, o governo dele é
bastante estranho, a diferença
entre as coisas em que ele um
dia acreditou e afirmou e o que
ele pratica hoje enquanto presidente é bastante grande. Um
dos problemas sérios do Lula
foi que o partido [PT] que todos
achávamos que existia junto
dele não existia. Mas eu o conheço, votei nele e ainda o acho
uma pessoa muito interessante, perseverante. Mas político é
político, é outra estrada.
FOLHA - Num cartum de "Laertevisão" você diz que foi um adolescente "parnasiano". Que tipo de adulto
é hoje?
LAERTE - Não sei te dizer. Acho
que sou um adulto contemporizador, que põe panos quentes.
FOLHA - Você quase foi um coroinha quando criança e depois largou
a religião. Mais tarde, transformou
Deus em personagem. Qual sua relação com Deus hoje em dia?
LAERTE - Eu gostava das tirinhas de Deus, mas elas eram
atéias. Não fiz as tiras para discutir religião, acho um tema
empolgante, mas gosto de tratá-lo fora da fé. Gosto da mitologia que as religiões propõem,
acho um modo muito criativo
de ver a vida, não quero discutir
se aquilo é mentira ou verdade.
De certa forma, quando eu faço
o personagem Deus, estou me
colocando ali. Assim como o
Deus do Allan Sieber é ele também, um sujeito com aquele nível de aguerrimento, bravo.
FOLHA - Falando em Sieber, uma
boa parte da geração dele enfatiza a
dureza da profissão de cartunista, a
pobreza. Muitos tiveram origens
humildes, enquanto você veio de
uma família de classe média alta. Isso fez diferença na sua obra?
LAERTE - Acho que sim. Vivíamos bem, sempre tivemos carro, bife na mesa, essas coisas.
Eu nunca precisei trabalhar e
sempre tive liberdade total para escolher o caminho que quisesse. Mas muitos dos cartunistas que eu conheço tiveram
problemas de sobrevivência. O
Angeli, por exemplo, foi trabalhar, foi office-boy, era um menino que trabalhava e foi para a
via do cartum com uma gana
diferente da minha, era mais
punk, um cara da classe operária. Eu fui porque gostava da
coisa, não queria ser um diletante, mas minha posição sempre foi muito mais cômoda.
FOLHA - E como você vê a profissão
de cartunista hoje em dia?
LAERTE - Está mais difícil, porque o preço caiu muito. O que
se pagava pelo trabalho de humorismo gráfico na década de
1970 era claramente superior,
assim como o espaço que essas
linguagens ocupavam na mídia.
Por exemplo, a "Playboy" era
uma maravilha para ilustradores, hoje não dá mais para contar com ela. Por outro lado,
existem muito mais publicações, então pode-se dizer que o
campo abriu bastante. Fora isso, os avanços tecnológicos, como programas de animação,
colocaram linguagens que
eram só sonhos, hoje são concretas. É possível uma pessoa
como Sieber fazer um filme
quase sozinho. Mas ainda é difícil ganhar a vida.
Leia íntegra da entrevista
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