São Paulo, quarta-feira, 29 de agosto de 2007

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"Somos "piratas" em relação a regras"

Laerte diz achar o governo Lula "bastante estranho", não ter mais opinião sobre os brasileiros e passar por "autodesencanto'

Cartunista, para quem os Piratas são os personagens que mais se destacaram em sua carreira, fala ainda do longa que escreve sobre eles

DA REPORTAGEM LOCAL

Leia abaixo a continuação da entrevista com Laerte. (MAC)

 

FOLHA - Seus dois lançamentos e sua tira na Ilustrada são relacionados ao seu passado. Você está em uma fase revisionista?
LAERTE -
É uma pergunta capciosa. Alguém que produz um livro de memórias não está fazendo uma coisa passadista, está usando como matéria-prima o que ele tem de experiência de vida. Mas eu acho que é verdade sim, não sei muito falar de projetos futuros, cheios de energia. Tem o longa-metragem dos Piratas, por exemplo [dirigido por Otto Guerra, que também fez "Wood & Stock", de Angeli].

FOLHA - Qual seu envolvimento?
LAERTE -
É grande, eu fiz o argumento e estou trabalhando no roteiro com o Gilmar Rodrigues. Vamos começar a fazer desenhos de produção, cenários, vou meter a mão.

FOLHA - E como é o roteiro?
LAERTE -
É uma história inédita, na qual os Piratas ficam de posse de um documento assinado há 400 anos entre o dono do terreno onde fica São Paulo e uns bandeirantes, que alugam a área por todo esse tempo. Quando o contrato acaba, a cidade precisa ser devolvida aos herdeiros do dono, que são os Piratas.

FOLHA - Os Piratas são seus personagens que mais se destacaram?
LAERTE -
Sim, acho que são os mais claros, têm mais peso. São um achado muito bom, estavam prontos como personagens, são auto-explicativos, misturam um fenômeno histórico que foi a pirataria com a visão romântica dela, que foi construída depois, no século 19.

FOLHA - Você fez pesquisa para chegar neles?
LAERTE -
Sim, eu gosto do assunto. E os personagens se encaixam perfeitamente numa história urbana brasileira crítica e atual. Todo dia vemos exemplos de como nós, enquanto cultura, somos flexíveis ao ponto da pirataria em relação a regras e normas. A pirataria é algo muito compreensível para qualquer um no Brasil.

FOLHA - No editorial da revista "Piratas" nš 1, em 1990, você perguntava qual era o plano geral do povo brasileiro. Já temos um hoje?
LAERTE -
Naquele tempo eu tinha algum tipo de opinião nessa área, hoje eu tenho bem menos. Acho que é um autodesencanto, meus pontos de vista vão se comprovando errados à medida que o tempo passa. Já fui do Partido Comunista e tinha um código muito nítido de concepções, mas, com o tempo, fui perceber que eu não acreditava ou não entendia direito o que era aquele negócio. Fui largando coisas e minhas percepções estão cada vez mais líquidas. Não tenho mais uma opinião sobre o povo brasileiro.

FOLHA - E sobre o presidente Lula, que você conheceu na época em que trabalhava com os sindicatos?
LAERTE -
Eu acho que ele é um cara legal. Não sei se é um bom presidente, o governo dele é bastante estranho, a diferença entre as coisas em que ele um dia acreditou e afirmou e o que ele pratica hoje enquanto presidente é bastante grande. Um dos problemas sérios do Lula foi que o partido [PT] que todos achávamos que existia junto dele não existia. Mas eu o conheço, votei nele e ainda o acho uma pessoa muito interessante, perseverante. Mas político é político, é outra estrada.

FOLHA - Num cartum de "Laertevisão" você diz que foi um adolescente "parnasiano". Que tipo de adulto é hoje?
LAERTE -
Não sei te dizer. Acho que sou um adulto contemporizador, que põe panos quentes.

FOLHA - Você quase foi um coroinha quando criança e depois largou a religião. Mais tarde, transformou Deus em personagem. Qual sua relação com Deus hoje em dia?
LAERTE -
Eu gostava das tirinhas de Deus, mas elas eram atéias. Não fiz as tiras para discutir religião, acho um tema empolgante, mas gosto de tratá-lo fora da fé. Gosto da mitologia que as religiões propõem, acho um modo muito criativo de ver a vida, não quero discutir se aquilo é mentira ou verdade. De certa forma, quando eu faço o personagem Deus, estou me colocando ali. Assim como o Deus do Allan Sieber é ele também, um sujeito com aquele nível de aguerrimento, bravo.

FOLHA - Falando em Sieber, uma boa parte da geração dele enfatiza a dureza da profissão de cartunista, a pobreza. Muitos tiveram origens humildes, enquanto você veio de uma família de classe média alta. Isso fez diferença na sua obra?
LAERTE -
Acho que sim. Vivíamos bem, sempre tivemos carro, bife na mesa, essas coisas. Eu nunca precisei trabalhar e sempre tive liberdade total para escolher o caminho que quisesse. Mas muitos dos cartunistas que eu conheço tiveram problemas de sobrevivência. O Angeli, por exemplo, foi trabalhar, foi office-boy, era um menino que trabalhava e foi para a via do cartum com uma gana diferente da minha, era mais punk, um cara da classe operária. Eu fui porque gostava da coisa, não queria ser um diletante, mas minha posição sempre foi muito mais cômoda.

FOLHA - E como você vê a profissão de cartunista hoje em dia?
LAERTE -
Está mais difícil, porque o preço caiu muito. O que se pagava pelo trabalho de humorismo gráfico na década de 1970 era claramente superior, assim como o espaço que essas linguagens ocupavam na mídia. Por exemplo, a "Playboy" era uma maravilha para ilustradores, hoje não dá mais para contar com ela. Por outro lado, existem muito mais publicações, então pode-se dizer que o campo abriu bastante. Fora isso, os avanços tecnológicos, como programas de animação, colocaram linguagens que eram só sonhos, hoje são concretas. É possível uma pessoa como Sieber fazer um filme quase sozinho. Mas ainda é difícil ganhar a vida.


Leia íntegra da entrevista

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