São Paulo, sexta-feira, 29 de agosto de 2008

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Crítica/"O Mistério do Samba"

Produção de Marisa Monte celebra Portela como escola de vida

Documentário reconstrói os passos da cultura do samba carioca com entrevistas preciosas, feitas ao longo de 10 anos

JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

Alguém já disse que o documentário "O Mistério do Samba" é o nosso "Buena Vista Social Club".
Os dois filmes, de fato, têm muito em comum. Assim como o documentário de Wim Wenders sobre veteranos músicos cubanos, trata-se aqui de reconstruir os passos e laços de toda uma cultura -no caso, a cultura do samba carioca, mais exatamente da Portela, um de seus pilares mais sólidos.
Poucas vezes a expressão "escola de samba" fez tanto sentido. Mais do que recuperar músicos esquecidos, na esteira do que Paulinho da Viola realizara já nos anos 60, o que Marisa Monte e a dupla de cineastas Carolina Jabor e Lula Buarque de Hollanda fazem é o registro vivo de uma arte coletiva em perpétuo movimento.
Nesse sentido, um dos momentos mais significativos do filme, e talvez o mais comovente, é aquele em que a quase nonagenária pastora Eunice ensina a um grupo de meninos e meninas os passos do "miudinho", que ela aprendeu diretamente com Paulo da Portela (1901-1949), fundador e figura mítica da escola.
Na fala mansa de Eunice há nostalgia, mas também um humor gaiato e sensual.
Entre ela e as crianças, passaram-se várias gerações de sambistas fabulosos, e é o amoroso fio condutor entre eles que o filme reconstitui com reverência e delicadeza.
Dois dos mais veteranos -Argemiro Patrocínio e Jair do Cavaquinho- morreram depois das filmagens, o que torna ainda mais preciosos os seus depoimentos lúcidos e bem-humorados, tanto quanto o registro de seu canto e sua dança.
A ponte entre a Velha Guarda e Marisa, tanto em termos de geração como de formação, é feita pelo sempre simpático e luminoso Paulinho da Viola.
É numa conversa entre os dois que a cantora explicita o que a levou a buscar a Velha Guarda: "Eu sentia que o mundo poderia ser melhor com esses sambas".
Outra passagem extraordinária, porque ditada pelo acaso, é aquela em que uma senhora vem pela rua com sua sacola de compras e, ao ouvir o samba que rola na quadra da escola, passa a sambar na calçada como uma passista de primeira.
Captar essa interação entre o samba e o ambiente social que o produz é uma das maiores virtudes do documentário.

Letras esquecidas
Outro grande mérito é o de acompanhar os passos de Marisa Monte na tentativa de recuperar composições aparentemente esquecidas.
Com infinita paciência, a cantora conversa com os remanescentes e descendentes da Velha Guarda, puxando de um a lembrança de uma estrofe, de outro a rima de um verso, de outro a história de um refrão.
A cena em que a viúva do grande compositor Manacéa encontra uma gaveta cheia de fitas cassete e letras datilografadas dá ao fato a dimensão de um achado arqueológico, e não é para menos. Há, ali, para usar uma linguagem de samba-enredo, uma riqueza sem igual.
As imagens "atuais" se alternam com material de arquivo e trechos de uma espécie de "making of" do disco que Marisa Monte gravou com a Velha Guarda no final dos anos 90.
É curioso notar, por exemplo, que Monarco se tornou um cantor melhor com a idade, a experiência e a rouquidão. Ou constatar a importância permanente das mulheres: embora não compusessem, eram sempre as pastoras que decidiam se um samba seria adotado ou não pela escola.
O filme, em suma, condensa o que o samba tem de melhor -elegância, sensualidade, paixão-, embalado no manto azul e branco da Portela.


O MISTÉRIO DO SAMBA
Produção: Brasil, 2008
Direção: Carolina Jabor e Lula Buarque de Hollanda
Onde: estréia hoje no Espaço Unibanco, iG Cine e circuito
Classificação indicativa: livre
Avaliação: ótimo


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