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Crítica/"O Mistério do Samba"
Produção de Marisa Monte celebra Portela como escola de vida
Documentário reconstrói os passos da cultura do samba carioca com entrevistas preciosas, feitas ao longo de 10 anos
JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA
Alguém já disse que o documentário "O Mistério do Samba" é o nosso
"Buena Vista Social Club".
Os dois filmes, de fato, têm
muito em comum. Assim como
o documentário de Wim Wenders sobre veteranos músicos
cubanos, trata-se aqui de reconstruir os passos e laços de
toda uma cultura -no caso, a
cultura do samba carioca, mais
exatamente da Portela, um de
seus pilares mais sólidos.
Poucas vezes a expressão "escola de samba" fez tanto sentido. Mais do que recuperar músicos esquecidos, na esteira do
que Paulinho da Viola realizara
já nos anos 60, o que Marisa
Monte e a dupla de cineastas
Carolina Jabor e Lula Buarque
de Hollanda fazem é o registro
vivo de uma arte coletiva em
perpétuo movimento.
Nesse sentido, um dos momentos mais significativos do
filme, e talvez o mais comovente, é aquele em que a quase nonagenária pastora Eunice ensina a um grupo de meninos e
meninas os passos do "miudinho", que ela aprendeu diretamente com Paulo da Portela
(1901-1949), fundador e figura
mítica da escola.
Na fala mansa de Eunice há
nostalgia, mas também um humor gaiato e sensual.
Entre ela e as crianças, passaram-se várias gerações de sambistas fabulosos, e é o amoroso
fio condutor entre eles que o
filme reconstitui com reverência e delicadeza.
Dois dos mais veteranos
-Argemiro Patrocínio e Jair do
Cavaquinho- morreram depois das filmagens, o que torna
ainda mais preciosos os seus
depoimentos lúcidos e bem-humorados, tanto quanto o registro de seu canto e sua dança.
A ponte entre a Velha Guarda
e Marisa, tanto em termos de
geração como de formação, é
feita pelo sempre simpático e
luminoso Paulinho da Viola.
É numa conversa entre os
dois que a cantora explicita o
que a levou a buscar a Velha
Guarda: "Eu sentia que o mundo poderia ser melhor com
esses sambas".
Outra passagem extraordinária, porque ditada pelo acaso,
é aquela em que uma senhora
vem pela rua com sua sacola de
compras e, ao ouvir o samba
que rola na quadra da escola,
passa a sambar na calçada como uma passista de primeira.
Captar essa interação entre o
samba e o ambiente social que
o produz é uma das maiores
virtudes do documentário.
Letras esquecidas
Outro grande mérito é o de
acompanhar os passos de Marisa Monte na tentativa de recuperar composições aparentemente esquecidas.
Com infinita paciência, a
cantora conversa com os remanescentes e descendentes da
Velha Guarda, puxando de um
a lembrança de uma estrofe, de
outro a rima de um verso, de
outro a história de um refrão.
A cena em que a viúva do
grande compositor Manacéa
encontra uma gaveta cheia de
fitas cassete e letras datilografadas dá ao fato a dimensão de
um achado arqueológico, e não
é para menos. Há, ali, para usar
uma linguagem de samba-enredo, uma riqueza sem igual.
As imagens "atuais" se alternam com material de arquivo e
trechos de uma espécie de "making of" do disco que Marisa
Monte gravou com a Velha
Guarda no final dos anos 90.
É curioso notar, por exemplo, que Monarco se tornou um
cantor melhor com a idade, a
experiência e a rouquidão. Ou
constatar a importância permanente das mulheres: embora não compusessem, eram
sempre as pastoras que decidiam se um samba seria adotado ou não pela escola.
O filme, em suma, condensa
o que o samba tem de melhor
-elegância, sensualidade, paixão-, embalado no manto azul
e branco da Portela.
O MISTÉRIO DO SAMBA
Produção: Brasil, 2008
Direção: Carolina Jabor e Lula Buarque
de Hollanda
Onde: estréia hoje no Espaço Unibanco, iG Cine e circuito
Classificação indicativa: livre
Avaliação: ótimo
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