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São Paulo, segunda-feira, 29 de setembro de 2003

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Delação marcou toda a trajetória do diretor

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Logo depois de ter colaborado com a Comissão de Atividades Anti-Americanas do Senado, em 1952, Elia Kazan fez um filme anticomunista e muito fraco chamado "Um Homem na Corda Bamba". Dele interessa o título, que define muito bem seu diretor.
Pouco antes, Kazan havia cedido às pressões da ""caça às bruxas" e delatado seus antigos colegas de Partido Comunista. Mas havia cedido de forma um tanto estrepitosa: publicou um artigo no ""New York Times", em que dizia, em suma, que delatar comunistas era uma questão de saúde pública.
Essa história começou nos anos 30, quando Kazan, já diretor de teatro, foi de fato membro ativo do PC. Mas, como o partido quisesse interferir em seu trabalho, rompeu com os comunistas. Não tinha nada com eles havia muito tempo quando chegou ao cinema, pelas mãos de Darryl Zanuck, nos anos 40. Seus primeiros filmes mostravam um diretor preocupado com questões sociais. Foi com um filme contra o anti-semitismo, ""A Luz É para Todos", que ganhou seu primeiro Oscar.
Em 1954, dirige uma produção independente, ""Sindicato de Ladrões", em que um personagem (o de Marlon Brando) vive um dilema análogo ao seu: delatar ou não às autoridades um sindicato portuário que era, a rigor, bela fachada do crime organizado. Para todos os efeitos, até hoje acredita-se em ""Sindicato" como um filme de ""justificação" de sua atitude. Indesculpável para muitos até hoje. Há poucos anos, ao receber um Oscar honorário, alguém há de lembrar, talvez pela primeira vez uma premiação desse gênero dividiu a platéia. Uma parte aplaudia o homem que, entre outras, fora um dos criadores do Actors" Studio e revolucionara a técnica de interpretação no cinema americana. Outra parte preferiu cruzar os braços e não pactuar com o delator.
O certo é que Kazan protagonizou um dos raros casos de talento cinematográfico a se consolidar após ter delatado colegas. A partir de ""Sindicato", seus filmes adquiriram uma marca pessoal que até então lhes faltava. Seus personagens passam a existir numa faixa estreita, fora da qual a vida se torna insuportável.
A dificuldade de viver torna-se um assunto preferencial ao qual Kazan acrescentará o exílio, de que trata explicitamente em ""A Terra do Sonho Distante". Mas essa dificuldade nunca excluirá a sensualidade.
Homem marcado profundamente pelo episódio da ""caça às bruxas", Kazan nunca demonstrará arrependimento por sua atitude. Aos que o criticaram respondia que sua obra falava sobre suas convicções (que sustentava serem de esquerda). Certo ou errado, assumiu num momento crítico da história dos EUA uma atitude radical, dilacerante, integralmente. Essa decisão será, para sempre, uma sombra em sua reputação. Mas foi ela que lhe permitiu tornar-se um autor de cinema. Descanse em paz.



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