São Paulo, quarta-feira, 29 de setembro de 2004

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A divina comédia de Eliot


Edição bilíngüe traz pela primeira vez a tradução brasileira da poesia e do teatro completos do autor de "A Terra Devastada"

Ivan Junqueira e Ivo Barroso contam como se deu a transladação da obra de um dos ícones da literatura mundial



MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

"Um marco histórico no âmbito da língua portuguesa." É dessa forma que Ivan Junqueira, 69, poeta, tradutor e presidente da Academia Brasileira de Letras, refere-se à edição bilíngüe, em dois volumes, da poesia e do teatro completos de T.S. Eliot (1888-1965), obra que pode ser comparada à "Divina Comédia" de Dante Alighieri.
Junqueira poderia ser acusado de advogar em causa própria, pois traduziu o volume de poesia. Mas a obra, que será lançada em outubro, fala por si. Além de todos os poemas saídos da pena de um dos maiores poetas do século 20, modernista por aclamação e clássico por aspiração, pela primeira vez coligidos em sua integralidade, o leitor brasileiro terá acesso a todas as peças do autor - a maioria ainda inédita em português.
A Faber & Faber, editora inglesa que detém os direitos sobre a obra de Eliot, queria que a tradução brasileira ficasse a cargo de uma só pessoa. A escolha lógica recaiu sobre Junqueira, que desde a década de 1960 se ocupa dos versos do poeta. "Tomei uma paixão por Eliot ainda muito moço, quando traduzi os "Quatro Quartetos'", diz ele. Juntando todas as décadas em que trabalhou na seara eliotiana, Junqueira calcula ter servido o poeta por sete anos de sua vida.
Sua última grande obra de tradução de Eliot data dos anos 80, uma antologia da Nova Fronteira que trazia todos os poemas longos, mas apenas uma seleção dos menos extensos. A nova edição conta agora com todos os poemas, incluindo os inéditos "Versos de Ocasião" e os póstumos "Poemas Escritos na Primeira Juventude", de 1967.
Inseriu-se também o "Livro do Velho Gambá sobre Gatos Travessos", retraduzido por exigência contratual. A obra, que redundou no megassucesso "Cats", de Andrew Lloyd Weber, já havia sido trasladada ao português pelo poeta Ivo Barroso, numa versão ganhadora do prêmio Jabuti.
Mas o trabalho não parou nos inéditos. Junqueira revisou todos os poemas já traduzidos. "A Nova Fronteira não fez reedições, mas reimpressões, o que me impediu de corrigir os erros", explica ele. Além disso, o tradutor confessa ter "tomado, na época, partido de uma constante inversão fraseológica", que hoje lhe parece "menos um ganho do que uma perda": desta vez preferiu a ordem sintática direta.
Depois de tudo isso, sentiu que seu "fôlego tinha ido embora" e sugeriu que Ivo Barroso, 74, vertesse as peças dramáticas de Eliot. "Acho que a tradução do teatro de Eliot é mais difícil que a poesia; é necessária uma grande preparação intelectual para enfrentar o permanente jogo de idéias que ali se acha", observa Junqueira.
Barroso conta ter tido um prazo "exíguo" de seis meses para concluir a tarefa, o que o obrigou a uma devoção "beneditina" ao teatro de Eliot. "Ficava doido quando traduzia menos de quatro páginas num dia", brinca.
A dificuldade é ainda maior quando se junta à densidade intelectual das peças o fato de elas serem escritas no formato poético, muitas vezes com versos tão sutis que soam como prosa (ou, numa prosa tão elaborada que soa como verso). Barroso procurou manter essa peculiaridade, apresentando uma linguagem corriqueira que não deixa de ser poética.
"Era preciso inserir o texto dentro de uma métrica capaz de imprimir à fala um ritmo próprio da poesia", afirma ele, "o que me fez lapidar a frase traduzida de modo a fazer brotar a poesia, sem perder o prosaísmo". Por isso, o leitor não deve estranhar rimas ou versos alexandrinos, em meio a bons dias e boas tardes. Barroso procurou ser o mais "fiel possível", mas privilegiando sempre a compreensibilidade. "A versão portuguesa de "O Assassínio na Catedral" buscou uma linguagem do século 16: eu quis tornar minha tradução acessível ao leitor do século 21", elucida.
É uma tarefa delicada. Segundo Junqueira, quando lhe repetem a velha máxima de que o tradutor é um traidor, retruca: "É um traidor, sim, mas e daí?". À guisa de esclarecimento, cita a frase de Dante Milano (1899-1991), tradutor do outro Dante, o Alighieri: "Pode-se traduzir o que um poeta quis dizer, nunca o que ele disse".


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