São Paulo, quarta-feira, 29 de setembro de 2004

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MARCELO COELHO

Sophia

Por pior que seja a cidade, sempre é bonito quando ela aparece de repente, numa curva da estrada, depois de horas de viagem. Sinto falta de um fundo musical apropriado para essas chegadas a São Paulo: a paisagem urbana, recortada contra o céu poluído, requer algum tipo de grave ênfase -sem dúvida bem diversa das marchinhas eleitorais que nestes dias nos perseguem pelo rádio.
Mas não vou falar de eleições nem de São Paulo. Passo a palavra à poeta portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen, que escrevia isto em 1977: "Digo: / "Lisboa" / Quando atravesso -vinda do sul- o rio / E a cidade a que chego abre-se como se do seu nome nascesse / Abre-se e ergue-se em sua extensão noturna/ ... / Com seus meandros de espanto insônia e lata/ E seu secreto rebrilhar de coisa de teatro/ ... / Lisboa oscilando como uma grande barca / Lisboa cruelmente construída ao longo de sua própria ausência / Digo o nome da cidade / -Digo para ver".
Sophia Breyner Andresen (1919-2004) é considerada uma das principais poetas portuguesas do século 20; amiga de Murilo Mendes e de João Cabral, não tem ainda muitos leitores no Brasil. Uma antologia de seus textos, organizada por Vilma Arêas, acaba de ser publicada pela Companhia das Letras.
Cito mais alguns trechos. No poema "A Escrita", a autora descreve o interior do palácio Mocenigo, em Veneza, onde viveu lorde Byron. Fala da "beleza das portas quando ninguém passava", do "liso brilhar do chão polido", dos "tetos altos onde se enrolam as sombras". Termina imaginando o próprio poeta: "A camisa aberta e branca / O branco do papel as aranhas da escrita/ E a luz da vela -como em certos quadros- / Tornando tudo atento".
Esse mesmo efeito súbito, de aparição fantasmagórica -Lisboa e Byron emergindo da escuridão-, pode ser encontrado em outros poemas. A autora conta, em "Cesário Verde", como "a luzidia noite assombrou os olhos dilatados" do poeta. Um texto curto faz menção a viajantes que "se perderam no repentino azul dos temporais". Numa paisagem, observa em outro poema, "passavam pelo ar aves repentinas".
Todas essas imagens -o rebrilhar de Lisboa, a luz da vela tornando tudo mais atento, as aves repentinas- evocam uma sensação difícil de definir. Aparecendo num clarão instantâneo, surgindo num momento especial, as coisas visíveis parecem emitir uma radiação que é não apenas luminosa mas também sonora; em vez de simplesmente olhar, é como se a poeta "escutasse" aquilo que se apresenta ao seu raio de visão.
A autora conta, aliás, que mesmo antes de saber ler, conhecia vários poemas de cor. "Encontrei a poesia antes de saber que havia literatura. Pensava que os poemas não eram escritos por ninguém, que existiam em si mesmos, por si mesmos, que eram como que um elemento do natural, que estavam suspensos, imanentes. E que bastaria estar muito quieta, calada e atenta para ouvi-los. Desse encontro inicial, ficou em mim a noção de que fazer versos é estar atento e de que o poeta é um escutador."
É assim que, ao lado daqueles momentos de "assombração" que víamos/ouvíamos acima, os poemas de Sophia Breyner Andresen tratam longamente do silêncio. "Sei que canto à beira de um silêncio", diz ela. Em outro poema, agradece o "dia de hoje", em que "o fantasma das maravilhas raras / visita, uma por uma, as tuas horas / Em que há por vezes súbitas demoras / Plenas como as pausas de um verso." Em "Jardim", o estado de espírito é diferente, mas a sensação é análoga: "Alguém diz: / "Aqui antigamente houve roseiras" / Então as horas / Afastam-se estrangeiras, / Como se o tempo fosse feito de demoras".
O jogo se faz, sem dúvida, entre pólos bem marcados: ausência e plenitude, luto e celebração. A vontade de louvar o existente, de dar graças ao mundo, é sempre suspeita na arte moderna; cumpre negá-la de algum modo, adiá-la ou desolar-se diante de sua impossibilidade. No caso de Sophia Breyner Andresen, vários poemas parecem confiar numa espécie de recuo, de silêncio, de recolhimento da autora, para que só assim o mundo possa surgir num transitório e brusco movimento de afirmação.
Sem dúvida, há algo de bem feminino nessa expectativa: alguns versos falam, por exemplo, de uma "flor de pânico e sossego" que aparece "nos grandes pátios da noite". Mas a mesma atitude aparece num registro político: a autora sempre combateu a ditadura salazarista em Portugal e foi capaz de escrever, em 1972, um poema ainda hoje convincente sobre Che Guevara. Ela critica o pôster do guerrilheiro, "pairando na sociedade de consumo" de forma puramente ritual, e também o "primarismo daqueles que confundem revolução com desforra". "Porém", continua, "em frente do teu rosto / Medita o adolescente à noite no seu quarto / Quando procura emergir de um mundo que apodrece".
Curioso intimismo de esquerda, em que a busca do despojamento poético, da forma pura e clara, no estilo de João Cabral, se mistura com uma sensibilidade quase mística, atenta aos rumores do vento e aos presságios da noite, no estilo de Cecília Meireles.
Num discurso pronunciado em 1964, Sophia Breyner Andresen dá conta dessa dupla face de sua poesia, entre a crítica e a celebração. Afirma que a busca da justiça social é uma "coordenada fundamental de toda a obra poética", já que "a justiça se confunde com aquele equilíbrio das coisas, com aquela ordem do mundo onde o poeta quer integrar seu canto".
Falar em "ordem do mundo" soa um tanto clássico e estetizante; a idéia talvez responda pelo que existe de mais bonito, mas também de menos vital, nos poemas da autora. Seus fantasmas, suas sombras e rápidos vislumbres permanecem, entretanto, espantosamente inquietos nos melhores poemas deste livro.


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