São Paulo, sábado, 29 de setembro de 2007

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Crítica/"Coisa de Negros"

Cucurto põe a alta literatura para dançar no chão

JOCA REINERS TERRON
ESPECIAL PARA A FOLHA

Existe outra Buenos Aires que não aquela metrópole européia perdida na América do Sul que todos conhecemos. Fica no bairro de Constituición, onde imigrantes paraguaios e peruanos se encontram para bailar em discotecas sórdidas, antes de voltarem aos cortiços em que vivem suas vidas anônimas.
O submundo da cumbia, ritmo colombiano adotado pelos descamisados latinos, é o universo paralelo das aventuras de Washington Cucurto em "Coisa de Negros".
Cucurto, um "dominicano dos demônios", é o pseudônimo de Santiago Vega, além de ser também o protagonista das narrativas escritas por esse quilmense nascido em 1973.
Raro escritor negro em meio à caucasiana literatura argentina, Vega não economiza melanina nas duas novelas que compõem o livro.

Gírias "callejeras"
A primeira, "Noites Vazias" (título de cumbia célebre da mártir do gênero, a falecida cantora Gilda), configura-se num monólogo delirante vaticinado pelo falante e bailante Eugênio, freguês fiel da discoteca Samber e verdadeira máquina de fazer paraguaiozinhos. Ele desfila seus requebros noite após noite num furor digno de maratonista, sempre em busca da mulher sem face e de cujo nome não se lembra. O tom é apologético e pornográfico, para dizer o mínimo, e a linguagem, plena em gírias "callejeras", chega, em momentos, a verdadeiros cumes poéticos de coloquialidade.
É a segunda novela, porém, a que dá título ao livro, a responsável por transformar Washington Cucurto no autor mais lendário da nova cena literária cisplatina.
O heróico dominicano é convidado a dar um show no aniversário de Buenos Aires, onde se envolve com a filha bastarda de Evita Perón e uma quadrilha de operários peronistas. Em apenas um dia na cidade, ele se mete em atentados terroristas que estremecem as relações diplomáticas entre seu país natal e a Argentina, é atacado por hordas de travestis e mulatas, até o final apoteótico e algo sobrenatural, digno de uma cumbia-do-crioulo-doido.

Funk carioca
Essa impressão picaresco-psicodélica consegue ser ainda mais amplificada na edição brasileira, graças ao trabalho do tradutor André Pereira da Costa que, com um osso duro de roer pela frente, foi obrigado a realizar hercúleas (ou haroldianas) transposições das gírias cumbiescas para expressões típicas dos funks cariocas. E dá-lhe "tchuchuca" na literatura.
Provindo de caminhos alternativos à grande tradição literária argentina, Washington Cucurto encontra seus antepassados no afrancesado Copi e suas "tias" caricaturais, em Osvaldo Lamborghini e seus "motoneros junkies" e pederastas, até culminar na profusão impura de moto-contínuos narrativos de César Aira. Arrancando abaixo a expressão literária argentina de seu cerebralismo característico, Cucurto põe a alta literatura para dançar no chão.
Tive oportunidade, num desses seminários, de perguntar a Aira o que havia de interessante na literatura argentina. "Cucurto", foi a resposta. Insistente, perguntei se não havia mais nada. "Cucurto e os amigos de Cucurto", respondeu de novo Aira, que deve ser chegado numa cumbia.


JOCA REINERS TERRON é escritor, autor de "Sonho Interrompido por Guilhotina" (Casa da Palavra)


COISA DE NEGROS
Autor: Washington Cucurto
Tradução: André Pereira da Costa
Editora: Rocco
Quanto: R$ 26 (184 págs.)
Avaliação: bom



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