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Crítica/"Coisa de Negros"
Cucurto põe a alta literatura para dançar no chão
JOCA REINERS TERRON
ESPECIAL PARA A FOLHA
Existe outra Buenos Aires que não aquela metrópole européia perdida na América do Sul que todos
conhecemos. Fica no bairro de
Constituición, onde imigrantes
paraguaios e peruanos se encontram para bailar em discotecas sórdidas, antes de voltarem aos cortiços em que vivem
suas vidas anônimas.
O submundo da cumbia, ritmo colombiano adotado pelos
descamisados latinos, é o universo paralelo das aventuras de
Washington Cucurto em "Coisa de Negros".
Cucurto, um "dominicano
dos demônios", é o pseudônimo de Santiago Vega, além de
ser também o protagonista das
narrativas escritas por esse
quilmense nascido em 1973.
Raro escritor negro em meio
à caucasiana literatura argentina, Vega não economiza melanina nas duas novelas que compõem o livro.
Gírias "callejeras"
A primeira, "Noites Vazias"
(título de cumbia célebre da
mártir do gênero, a falecida
cantora Gilda), configura-se
num monólogo delirante vaticinado pelo falante e bailante
Eugênio, freguês fiel da discoteca Samber e verdadeira máquina de fazer paraguaiozinhos. Ele desfila seus requebros noite após noite num furor digno de maratonista, sempre em busca da mulher sem face e de cujo nome não se lembra. O tom é apologético e pornográfico, para dizer o mínimo,
e a linguagem, plena em gírias
"callejeras", chega, em momentos, a verdadeiros cumes poéticos de coloquialidade.
É a segunda novela, porém, a
que dá título ao livro, a responsável por transformar Washington Cucurto no autor mais
lendário da nova cena literária
cisplatina.
O heróico dominicano é convidado a dar um show no aniversário de Buenos Aires, onde
se envolve com a filha bastarda
de Evita Perón e uma quadrilha
de operários peronistas. Em
apenas um dia na cidade, ele se
mete em atentados terroristas
que estremecem as relações diplomáticas entre seu país natal
e a Argentina, é atacado por
hordas de travestis e mulatas,
até o final apoteótico e algo sobrenatural, digno de uma cumbia-do-crioulo-doido.
Funk carioca
Essa impressão picaresco-psicodélica consegue ser ainda
mais amplificada na edição brasileira, graças ao trabalho do
tradutor André Pereira da Costa que, com um osso duro de
roer pela frente, foi obrigado a
realizar hercúleas (ou haroldianas) transposições das gírias
cumbiescas para expressões típicas dos funks cariocas. E dá-lhe "tchuchuca" na literatura.
Provindo de caminhos alternativos à grande tradição literária argentina, Washington
Cucurto encontra seus antepassados no afrancesado Copi e
suas "tias" caricaturais, em Osvaldo Lamborghini e seus "motoneros junkies" e pederastas,
até culminar na profusão impura de moto-contínuos narrativos de César Aira. Arrancando abaixo a expressão literária
argentina de seu cerebralismo
característico, Cucurto põe a
alta literatura para dançar no
chão.
Tive oportunidade, num desses seminários, de perguntar a
Aira o que havia de interessante na literatura argentina. "Cucurto", foi a resposta. Insistente, perguntei se não havia mais
nada. "Cucurto e os amigos de
Cucurto", respondeu de novo
Aira, que deve ser chegado numa cumbia.
JOCA REINERS TERRON é escritor, autor de
"Sonho Interrompido por Guilhotina" (Casa da
Palavra)
COISA DE NEGROS
Autor: Washington Cucurto
Tradução: André Pereira da Costa
Editora: Rocco
Quanto: R$ 26 (184 págs.)
Avaliação: bom
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