São Paulo, Sexta-feira, 29 de Outubro de 1999
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CRÍTICA
"Filme sonha com a harmonia social

JOSÉ GERALDO COUTO
da Equipe de Articulistas

Todos conhecem as boas intenções por trás do filme "O Primeiro Dia", dirigido por Daniela Thomas e Walter Salles.
Seus diretores já explicaram à exaustão como foram inspirados pelas conclusões do jornalista Zuenir Ventura sobre o apartheid social e do psicanalista Jurandir Freire Costa sobre a incapacidade de ver "o outro" na sociedade brasileira atual.
Encomendado pela rede fanco-alemã de TV Arte para compor a série "2000 visto por...", "O Primeiro Dia" surge, já ao primeiro olhar, como isso mesmo: um filme cheio de intenções, uma obra que obedece a um projeto preciso.
Qual é esse projeto? O de mostrar a dramática cisão social brasileira e propor uma utopia para a sua superação. Tudo no filme -enredo, direção de arte, fotografia, dramaturgia- será convocado a dar substância a essa proposta geral.
O enredo não podia ser mais adequado. Há duas histórias paralelas que se cruzam no final.
De um lado, o bandido João (Luiz Carlos Vasconcelos) tem sua fuga da cadeia facilitada em troca de um "serviço": matar seu amigo Francisco (Matheus Nachtergaele), que andou dedurando uns policiais corruptos.
De outro lado, a professora de classe média Maria (Fernanda Torres) vê-se às voltas com um drama amoroso: seu marido Pedro (Carlos Vereza) abandonou-a sem mais nem menos na véspera do ano 2000.
O problema do filme não está, como se poderia supor, no modo "inverossímil" como é encenado o encontro entre esses dois mundos. Esta é, na verdade, uma das mais belas cenas do filme, uma verdadeira epifania, no telhado de um prédio de Copacabana entre os fogos do Reveillon.

Desequilíbrio interno
O problema é anterior a essa conciliação de classe. Está no desequilíbrio com que são apresentadas e desenvolvidas as duas linhas paralelas do entrecho.
A história de João -dentro e fora do presídio- é rica em observação social, matizes dramáticos, personagens originais.
Mas o infortúnio de Maria não recebe a mesma atenção e elaboração por parte dos realizadores.
Filmado segundo os clichês do filme romântico/publicitário -vide a sequência dos 20 telefonemas de amor e um banho desesperado-, o drama da moça é visto quase como uma frescura burguesa.
Em contraste, a trajetória de João assume uma dimensão crescentemente trágica, que tem seu clímax no confronto do herói/ bandido com o amigo a ser traído. Encenada com precisão claustrofóbica, amparada em dois tremendos atores, é uma cena memorável.
Qualquer que seja a crítica que se faça a "O Primeiro Dia", é impossível não reconhecer seus grandes momentos de cinema, muitos deles filmados com câmera na mão: a rebelião no presídio, a caminhada de João pelas ruas em festa, o confronto entre os amigos, a correria pela favela.
Há, entre outros achados, uma utilização primorosa da labiríntica topografia carioca e um uso inspirado da música.
Uma leitura sociológica do filme -tarefa que cabe a Marcelo Coelho, Fernando Barros e Silva ou Gilberto Vasconcelos- terá muito pano para manga.
A começar do fato de que, assim como em "Central do Brasil", também aqui a dimensão da contradição social parece ter sido substituída pela da "diferença".
A política foi desalojada pela ética dos relacionamentos, que elude a discussão sobre o poder. Não são mais as estruturas que precisam ser transformadas, mas "a cabeça das pessoas".
Não por acaso, como em "Central", os personagens têm nomes bíblicos. É uma visão claramente cristã do mundo que anima "O Primeiro Dia".


Avaliação:   


Filme: O Primeiro Dia Diretores: Daniela Thomas e Walter Salles Produção: Brasil, 1999 Com: Luiz Carlos Vasconcelos, Fernanda Torres, Matheus Nachtergaele Quando: a partir de hoje, no Unibanco 1, Iguatemi 1, Internacional Guarulhos 15, SP Market 7 e West Plaza 4


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