São Paulo, sábado, 29 de outubro de 2005

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CRÍTICA

Autor mira a humanidade em geral

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

A vida ganhou várias definições pouco lisonjeiras ao longo da história. A mais famosa talvez tenha dito o usurpador Macbeth: "A vida é apenas uma sombra errante" etc. Neste novo e badalado -com "lançamento mundial"- romance de José Saramago, há outra: "A vida é uma orquestra que sempre está tocando, afinada, desafinada, um paquete titanic que sempre afunda e sempre volta à superfície".
A afirmação, menos tenebrosa que a de Shakespeare (porque alude a uma possibilidade de eterno retorno), é cogitada pela "heroína" do romance, a própria morte. Um dos méritos narrativos, aliás, está no fato de esta protagonista só dar as caras, ou melhor, os ossos, lá pela metade da trama. Na primeira parte, ela se ausenta, e é justamente sua ausência que causa a complicação.
"No dia seguinte ninguém morreu": assim inicia a fábula, que em seguida passa a verificar as conseqüências da greve da morte num país imaginário. Entram em cena personagens como o rei, o primeiro-ministro, além dos representantes das funerárias, hospitais, igreja e organização criminosa, que, aqui, autodenomina-se Máphia (assim mesmo, com "ph").
São personagens-tipos, como se vê, que servem para balizar o arcabouço de uma sociedade. Ao contrário do tecido social de "A Jangada de Pedra", não podemos determinar que se trata do povo português. Não só é uma monarquia, não só é cercada por países, como não temos o mar. Se é Portugal, é um Portugal interiorizado, sitiado, murado.
O busílis é o seguinte: as pessoas não morrem, mas também não deixam de envelhecer e de agonizar, ficando num estado sibilino de "vida suspensa", ou "morte parada".
Os hospitais e asilos abarrotam, os agentes funerários ficam incumbidos da inglória tarefa de enterrar animais (esta morte demasiado humana não se ocupa dos bichos nem das plantas), e o cardeal preocupa-se: "Sem morte, não há ressurreição, e sem ressurreição, não há igreja". A confusão é tão grande que mesmo as nações vizinhas, não afetadas pela paralisação mortuária, sentem-se aliviadas por não partilharem o fardo.
Mas então a morte volta, ou aparece, lá pelo meio: com seu feitio esquelético, envolta em mortalha e capuz, é a própria figura que ronda o imaginário popular. Ela começa a enviar cartas a seus próximos alvos, avisando-os para acertarem suas coisas na terra, desde que, em uma semana, viria buscá-los.

Humanidade e morte
Ocorre que um dos "memento mori" retorna. Consultando seus fichários, a morte descobre que o destinatário da carta devolvida é um violoncelista, e se põe a segui-lo. Se, na primeira metade, acompanhamos as peripécias da humanidade quando se vê alijada da morte, agora temos a morte agoniada com a rejeição do homem. Humanidade e morte, uma não parece passar sem a outra. A indissolubilidade da relação é explicitada pela redenção amorosa do final.
Há um ar de conformidade, que combina com o tom passadista da fábula, cujo maior símbolo é o "ph" da máfia local. Além disso, como nesta alegoria os personagens podem ser todo mundo e ninguém, o país, embora com vezo lusitano, torna-se qualquer país.
Em suas últimas ficções, Saramago vem dirigindo o espelho da ficção para a humanidade em geral. Se o escopo totalizador amplia o alcance, dando margem a abundantes inquietações filosóficas, também perde o foco no miúdo, no ser, sítio e situações concretos. "Saberemos cada vez menos o que é um ser humano", diz uma das epígrafes. O homem converte-se, de fato, numa incógnita -assim como a vida comezinha, que o (des)anima.


As Intermitências da Morte
   
Autor: José Saramago
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 35 (208 págs.)


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