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CRÍTICA
Autor mira a humanidade em geral
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
A vida ganhou várias definições pouco lisonjeiras ao
longo da história. A mais famosa
talvez tenha dito o usurpador
Macbeth: "A vida é apenas uma
sombra errante" etc. Neste novo e
badalado -com "lançamento
mundial"- romance de José Saramago, há outra: "A vida é uma
orquestra que sempre está tocando, afinada, desafinada, um paquete titanic que sempre afunda e
sempre volta à superfície".
A afirmação, menos tenebrosa
que a de Shakespeare (porque
alude a uma possibilidade de eterno retorno), é cogitada pela "heroína" do romance, a própria
morte. Um dos méritos narrativos, aliás, está no fato de esta protagonista só dar as caras, ou melhor, os ossos, lá pela metade da
trama. Na primeira parte, ela se
ausenta, e é justamente sua ausência que causa a complicação.
"No dia seguinte ninguém morreu": assim inicia a fábula, que em
seguida passa a verificar as conseqüências da greve da morte num
país imaginário. Entram em cena
personagens como o rei, o primeiro-ministro, além dos representantes das funerárias, hospitais, igreja e organização criminosa, que, aqui, autodenomina-se
Máphia (assim mesmo, com
"ph").
São personagens-tipos, como se
vê, que servem para balizar o arcabouço de uma sociedade. Ao
contrário do tecido social de "A
Jangada de Pedra", não podemos
determinar que se trata do povo
português. Não só é uma monarquia, não só é cercada por países,
como não temos o mar. Se é Portugal, é um Portugal interiorizado, sitiado, murado.
O busílis é o seguinte: as pessoas
não morrem, mas também não
deixam de envelhecer e de agonizar, ficando num estado sibilino
de "vida suspensa", ou "morte parada".
Os hospitais e asilos abarrotam,
os agentes funerários ficam incumbidos da inglória tarefa de enterrar animais (esta morte demasiado humana não se ocupa dos
bichos nem das plantas), e o cardeal preocupa-se: "Sem morte,
não há ressurreição, e sem ressurreição, não há igreja". A confusão
é tão grande que mesmo as nações vizinhas, não afetadas pela
paralisação mortuária, sentem-se
aliviadas por não partilharem o
fardo.
Mas então a morte volta, ou
aparece, lá pelo meio: com seu feitio esquelético, envolta em mortalha e capuz, é a própria figura que
ronda o imaginário popular. Ela
começa a enviar cartas a seus próximos alvos, avisando-os para
acertarem suas coisas na terra,
desde que, em uma semana, viria
buscá-los.
Humanidade e morte
Ocorre que um dos "memento
mori" retorna. Consultando seus
fichários, a morte descobre que o
destinatário da carta devolvida é
um violoncelista, e se põe a segui-lo. Se, na primeira metade, acompanhamos as peripécias da humanidade quando se vê alijada da
morte, agora temos a morte agoniada com a rejeição do homem.
Humanidade e morte, uma não
parece passar sem a outra. A indissolubilidade da relação é explicitada pela redenção amorosa do
final.
Há um ar de conformidade, que
combina com o tom passadista da
fábula, cujo maior símbolo é o
"ph" da máfia local. Além disso,
como nesta alegoria os personagens podem ser todo mundo e
ninguém, o país, embora com vezo lusitano, torna-se qualquer
país.
Em suas últimas ficções, Saramago vem dirigindo o espelho da
ficção para a humanidade em geral. Se o escopo totalizador amplia
o alcance, dando margem a abundantes inquietações filosóficas,
também perde o foco no miúdo,
no ser, sítio e situações concretos.
"Saberemos cada vez menos o
que é um ser humano", diz uma
das epígrafes. O homem converte-se, de fato, numa incógnita
-assim como a vida comezinha,
que o (des)anima.
As Intermitências da Morte
Autor: José Saramago
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 35 (208 págs.)
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