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RODAPÉ
Simulacros da carne
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
"O Reino da Pele", livro de
Contador Borges lançado
nessa semana, reúne um tipo de
poesia que ocupa um lugar excêntrico na literatura brasileira: uma
poética feita de imagens exuberantes, com uma atmosfera de delírio que mistura paraísos artificiais com epifanias e transcendências.
Para o leitor acostumado com a
tradição modernista, a poesia de
Contador Borges tem algo de excessivo e disforme, já que aquela
linhagem "hegemônica" é feita de
rigor formal e economia de metáforas, tanto em sua vertente lírica
(cotidiana, sentimental) quanto
nas tendências mais construtivistas e experimentais (centradas
nos objetos até o ponto em que a
própria palavra se transforma em
coisa entre coisas).
Portanto, "O Reino da Pele" deve ser visto como exceção à regra
-mas uma exceção que pertence
a uma vasta galeria de autores que
desenvolvem essa poesia imagética, de colorações surrealistas, em
que se misturam sensações e estados oníricos com momentos de
iluminação interior, em que a
contemplação de objetos revela
um mais-além de feições quase
místicas.
Companheiros
Seria fácil encontrar os antecessores e companheiros de viagem
de Contador Borges: poetas como
Cláudio Willer, Roberto Piva e
Afonso Henriques Neto, cujas
obras são referência mais ou menos próximas para autores mais
jovens como Floriano Martins,
Sérgio Cohn ou Claudio Daniel
(que assina o posfácio de "O Reino da Pele").
De certo modo, podemos dizer
que são estes os verdadeiros
"marginais" da literatura brasileira, já que a chamada "geração
marginal", dos anos 70, foi assimilada às linhas de força do modernismo, sendo incluída nas
principais antologias de poesia
contemporânea.
No que diz respeito ao livro de
Contador Borges, a explosão de
imagens e o tom celebratório podem ser um obstáculo inicial. Nele, tudo obedece a um "querer
caudaloso, misterioso"; quer "que
a voz esclareça o ser da aparência"
e espera "que num rito espontâneo o juízo proclame seu fim".
Embora em alguns poucos poemas ele faça profissão de fé na
contenção emotiva e formal ("Ardor maior é coisa/ que não cabe
num poema// luzes sim/ mas luzes frias// sem contar as cinzas"),
em geral essa poesia inebriada
corteja o irracionalismo: "imerso
em treva/ o corpo/ cada vez mais
leve/ vai ao fundo/ de tudo".
Poesia
Há em "O Reino da Pele" um
predomínio significativo de poemas em prosa. Ou seja, aqui não é
o ritmo ou a metrificação que disciplina as equações poéticas (como ocorre no texto em versos),
mas é a torrente de imagens que
dita a forma, cancelando a diferença entre prosa e poesia. E essa
volúpia visionária, por sua vez, é
coerente com o percurso de Contador Borges, tradutor de "malditos" como Sade e Nerval e dos aforismos "oraculares" de René
Char.
Se há uma aura de misticismo
nessa poesia, trata-se de um misticismo pagão, carnal. O próprio
título do livro é uma referência a
escritores que, de Sacher-Masoch
("A Vênus das Peles") a Georges
Bataille ("História do Olho"), fazem do ato sexual uma liturgia cujo altar é o corpo -um corpo segmentado por fetichismos que perturbam a ordem natural, conferindo uma estranha nobreza à pele dilacerada, aos membros que
definham e apodrecem como
num bronze de Giacometti.
Esse registro de um erotismo
violento, em que o gozo é vizinho
da morte, aparece de modo oblíquo, como no belíssimo poema
que fala do "pentagrama da carne" (leia ao lado) ou na série
"Anamorfoses". Mais do que isso,
porém, o escritor antropomorfiza
a matéria, fala das coisas como
quem realiza uma anatomia, tateia a superfície dos objetos como
se fosse uma epiderme, um "simulacro da carne".
A pele dos seres e das coisas parece ser a última superfície possível sobre a qual se aplica a escrita.
A pele é seu pergaminho e sua lei.
Como a personagem do filme "O
Livro de Cabeceira", de Greenaway, Contador Borges escreve como quem faz uma tatuagem, no
que esta pode ter de delicado e
maníaco, repulsivo e lírico.
O Reino da Pele
Autor: Contador Borges
Editora: Iluminuras
Quanto: R$ 24 (80 págs.)
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