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São Paulo, sábado, 29 de novembro de 2003

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RODAPÉ

Simulacros da carne

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

"O Reino da Pele", livro de Contador Borges lançado nessa semana, reúne um tipo de poesia que ocupa um lugar excêntrico na literatura brasileira: uma poética feita de imagens exuberantes, com uma atmosfera de delírio que mistura paraísos artificiais com epifanias e transcendências.
Para o leitor acostumado com a tradição modernista, a poesia de Contador Borges tem algo de excessivo e disforme, já que aquela linhagem "hegemônica" é feita de rigor formal e economia de metáforas, tanto em sua vertente lírica (cotidiana, sentimental) quanto nas tendências mais construtivistas e experimentais (centradas nos objetos até o ponto em que a própria palavra se transforma em coisa entre coisas).
Portanto, "O Reino da Pele" deve ser visto como exceção à regra -mas uma exceção que pertence a uma vasta galeria de autores que desenvolvem essa poesia imagética, de colorações surrealistas, em que se misturam sensações e estados oníricos com momentos de iluminação interior, em que a contemplação de objetos revela um mais-além de feições quase místicas.

Companheiros
Seria fácil encontrar os antecessores e companheiros de viagem de Contador Borges: poetas como Cláudio Willer, Roberto Piva e Afonso Henriques Neto, cujas obras são referência mais ou menos próximas para autores mais jovens como Floriano Martins, Sérgio Cohn ou Claudio Daniel (que assina o posfácio de "O Reino da Pele").
De certo modo, podemos dizer que são estes os verdadeiros "marginais" da literatura brasileira, já que a chamada "geração marginal", dos anos 70, foi assimilada às linhas de força do modernismo, sendo incluída nas principais antologias de poesia contemporânea.
No que diz respeito ao livro de Contador Borges, a explosão de imagens e o tom celebratório podem ser um obstáculo inicial. Nele, tudo obedece a um "querer caudaloso, misterioso"; quer "que a voz esclareça o ser da aparência" e espera "que num rito espontâneo o juízo proclame seu fim".
Embora em alguns poucos poemas ele faça profissão de fé na contenção emotiva e formal ("Ardor maior é coisa/ que não cabe num poema// luzes sim/ mas luzes frias// sem contar as cinzas"), em geral essa poesia inebriada corteja o irracionalismo: "imerso em treva/ o corpo/ cada vez mais leve/ vai ao fundo/ de tudo".

Poesia
Há em "O Reino da Pele" um predomínio significativo de poemas em prosa. Ou seja, aqui não é o ritmo ou a metrificação que disciplina as equações poéticas (como ocorre no texto em versos), mas é a torrente de imagens que dita a forma, cancelando a diferença entre prosa e poesia. E essa volúpia visionária, por sua vez, é coerente com o percurso de Contador Borges, tradutor de "malditos" como Sade e Nerval e dos aforismos "oraculares" de René Char.
Se há uma aura de misticismo nessa poesia, trata-se de um misticismo pagão, carnal. O próprio título do livro é uma referência a escritores que, de Sacher-Masoch ("A Vênus das Peles") a Georges Bataille ("História do Olho"), fazem do ato sexual uma liturgia cujo altar é o corpo -um corpo segmentado por fetichismos que perturbam a ordem natural, conferindo uma estranha nobreza à pele dilacerada, aos membros que definham e apodrecem como num bronze de Giacometti.
Esse registro de um erotismo violento, em que o gozo é vizinho da morte, aparece de modo oblíquo, como no belíssimo poema que fala do "pentagrama da carne" (leia ao lado) ou na série "Anamorfoses". Mais do que isso, porém, o escritor antropomorfiza a matéria, fala das coisas como quem realiza uma anatomia, tateia a superfície dos objetos como se fosse uma epiderme, um "simulacro da carne".
A pele dos seres e das coisas parece ser a última superfície possível sobre a qual se aplica a escrita. A pele é seu pergaminho e sua lei. Como a personagem do filme "O Livro de Cabeceira", de Greenaway, Contador Borges escreve como quem faz uma tatuagem, no que esta pode ter de delicado e maníaco, repulsivo e lírico.


O Reino da Pele
   
Autor: Contador Borges Editora: Iluminuras Quanto: R$ 24 (80 págs.)



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